domingo, 31 de janeiro de 2010

Fé e suspeita em Freud
SERGIO PAULO ROUANET
COLUNISTA DA FOLHA

Este ano foi pródigo em efemérides, desde o centenário do nascimento de Sartre ao cinqüentenário da morte de Einstein, mas mesmo assim há lugar para comemorar os 75 anos da publicação de um dos livros mais influentes do nosso tempo: "O Mal-Estar na Civilização", de Sigmund Freud.
Freud começa seu livro retomando a questão da religião, que discutira pouco antes, em "Futuro de uma Ilusão". Para ele, a religião não se devia a nenhum sentimento "oceânico", como pensava [o escritor] Romain Rolland, mas à necessidade humana de fabricar ilusões, entre as quais a ilusão religiosa, que nos ajuda em nosso desamparo, criando a figura de um pai transcendente, e nos oferece a promessa da bem-aventurança eterna, compensando-nos por nossa infelicidade terrena.
Entre as fontes dessa infelicidade está a civilização, sem a qual não podemos subsistir, mas que nos impõe sacrifícios que nos impedem de realizar o "programa do princípio do prazer". Com efeito, o homem é por natureza um ser predatório, egoísta, avesso ao trabalho, um lobo, no sentido de Hobbes, e por isso foi obrigado a concluir um pacto social que permitisse sua sobrevivência. Mas esse pacto exigiu um preço terrível.
No plano erótico, o homem foi forçado a abrir mão do incesto, em benefício da sexualidade exogâmica; da "perversidade polimorfa", em benefício da genitalidade; e da promiscuidade, em benefício da monogamia. E teve que abdicar da gratificação indiscriminada dos seus impulsos agressivos. Essas renúncias são impostas em parte pela autoridade externa. E em parte pela ação da autoridade externa introjetada, o supereu, continuação endopsíquica do pai e dos seus sucedâneos no mundo adulto. Com cada sacrifício pulsional, a culpa aumenta, em vez de diminuir. Eis o mal-estar: frustração e culpa. O ressentimento contra a civilização é uma conseqüência lógica desse mal-estar.


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Freud apostava no Iluminismo, sabendo que podia perder a aposta
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Mas a civilização em si está atravessada por forças contraditórias. O mesmo dualismo que rege a vida psíquica do indivíduo -pulsão da vida (Eros) versus pulsão da morte (Tânatos)- se manifesta na civilização. O trabalho da civilização é conduzido por Eros, cuja vocação imanente é ligar conjuntos cada vez mais vastos -famílias, povos, nações, humanidade.
Mas esse objetivo é contrariado por Tânatos, a pulsão da morte, que, extrojetada, pode transformar-se em destrutividade cega. Eros liga, Tânatos desliga e dissocia. Mas a relação entre Eros e a civilização está longe de ser unívoca. Por um lado, a civilização inibe e restringe os impulsos eróticos do indivíduo, por sua natureza associais e infensos a limites externos.
E, por outro lado, a vocação de Eros de criar conjuntos cada vez mais amplos é bloqueada pelo narcisismo de grupo, o "narcisismo das pequenas diferenças", que leva os membros de uma comunidade a entrincheirar-se em sua identidade coletiva, hostilizando os membros de outro grupos. Ou seja, Eros fica fiel à sua essência quando cria laços de identificação intragrupal.
Mas essa coesão é obtida a um custo altíssimo, o deslocamento dos impulsos agressivos para fora. O resultado é o nacionalismo, a rivalidade entre as nações e a guerra. Fica em aberto o desfecho do drama da civilização: na batalha "titânica" travada entre os dois "poderes celestiais", Eros e Tânatos, pode-se esperar que Eros leve a melhor, mas ninguém poderá prever o resultado final.

Duas deformações
"O Mal-Estar na Civilização" despertou e continua a despertar controvérsias apaixonadas. As reações ao livro podem ser distribuídas em duas correntes. Uma delas, de orientação marxista, critica o pessimismo de Freud e admite a possibilidade de que, numa sociedade mais justa, Eros consiga controlar o potencial de aniquilamento de Tânatos e de que a razão, Logos, venha a assumir um papel mais decisivo na administração dos impulsos humanos, em detrimento dos mecanismos inconscientes (Reich, Marcuse).
A outra, pelo contrário, radicaliza esse pessimismo, afirmando que nenhuma transformação social poderia alterar os dados básicos do psiquismo humano, que incluem a necessidade da ilusão, alimentada por processos inconscientes, e o livre funcionamento da pulsão da morte.
A meu ver, são duas deformações de Freud. A primeira é uma deformação angelista. O homem é visto como um puro efeito das relações sociais. É nelas que está radicado o mal. Transformadas essas relações, a inocência natural do homem virá à tona. Há algo de gnóstico nessa visão, uma certa rejeição do corpo, uma certa desmaterialização da "physis": para essa corrente, o homem não é carnal, é social.
A segunda é uma deformação naturalista. O homem é o que é, em sua materialidade, em sua biologia, em seu psiquismo. Seu destino está predeterminado por essa realidade, e todos os esforços para modifica-la são ou utópicos ou indesejáveis.
As duas deformações têm algo de teológico. A primeira vem de uma teologia otimista, que nega o pecado original. A segunda vem de uma teologia pessimista, agostiniana, que parte da hipótese de uma "natura deleta", de uma depravação hereditária do homem, capaz de resistir a todas as transformações sociais.
Uma releitura sem preconceitos de "O Mal-Estar na Civilização" mostra que Freud se situa entre essas duas perspectivas. Ele permanece aquém do angelismo e vai além do naturalismo. É claramente anti-angelista quando aceita como parte de nossa herança antropológica a existência de uma predisposição à violência e quando afirma a existência de um aparelho pulsional especificamente humano, além do mero instinto, que condena o homem à falta, ao inacabamento, à frustração socialmente necessária.
É resolutamente anti-angelista quando nega que a revolução social possa modificar dados fundamentais da natureza humana, como a propensão à agressividade.

Certezas e dúvidas
Mas vai além do naturalismo, na medida em que reconhece a influência fortíssima do mundo social. Existe, para ele, uma violência externa ilegítima, que não visa manter a vida civilizada como tal, e sim perpetuar uma ordem social injusta. O que significa, em linguagem clara, que boa parte da repressão pulsional se tornaria supérflua no momento em que fossem corrigidas as assimetrias de riqueza e de poder, reduzindo um dos fatores que contribuem para a infelicidade humana.
A verdade é que Freud era ao mesmo tempo um pensador iluminista e um cético. Apostava no Iluminismo, sabendo que podia perder a aposta. Enquanto iluminista, acreditava na utopia de uma consciência transparente para si mesma, no plano individual, e na utopia de uma sociedade regida pela razão, no plano coletivo. Enquanto cético, duvidava da viabilidade desse duplo programa e distanciava-se de qualquer utopia.
Num mundo em que nem podemos aderir às antigas certezas nem resignar-nos a uma vida sem esperança, é importante seguirmos o exemplo de Freud. Ele nos permite combinar fé e dúvida, a crença na emancipação com a suspeita de que a salvação não é deste mundo.



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Sergio Paulo Rouanet é sociólogo, autor de "Os Dez Amigos de Freud" (dois volumes, Companhia das Letras).

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