terça-feira, 30 de março de 2010

Comentário

Paradoxos de Jack Bauer, da série "24 Horas", não cabem no governo Obama
LUCIANA COELHO
DE GENEBRA

De tudo o que a ficção americana pariu nos anos Bush, nada é tão significativo e interessante quanto Jack Bauer e sua missão de salvar os EUA de ameaças terroristas cataclísmicas. Quando o reloginho digital bipar na tela os últimos segundos do oitavo dia na vida do personagem, daqui a dez episódios, muito mais do que uma série de TV terá acabado.
O que está se vendo agora é a lenta transição de um modo de pensar. E nos EUA de Barack Obama já não cabe Jack Bauer e os paradoxos nele contidos. Nem é que muito tenha mudado na prática -o Iraque apaziguou um tanto, mas no Afeganistão a guerra acirrou; Guantánamo segue aberta; e mesmo com um acordo para o desmantelamento nuclear assinado, os EUA estão longe de abdicar do arsenal. Não são tempos de paz.
Mas as prioridades são outras. O heroísmo hidrófobo de Jack já não serve mais.
Sua flexibilidade ante a lei e a moral comum, para seguir a sua própria por uma causa até então dita urgente, já não pode ser admitida em um país onde o medo de pagar as contas se tornou mais premente do que o de se explodir em um avião. Contraterrorismo não pode ser pop, ainda que siga necessário.
É verdade que o agente imaginado por Robert Crochan e Joel Surnow -e que o ator Kiefer Sutherland trouxe brilhantemente ao mundo quando ainda estávamos estarrecidos com o 11 de Setembro- estava cansado, perdido até. Os roteiros nas últimas três temporadas já não hipnotizavam como no início. No máximo ficou aquele interesse medido pelas desventuras de um sujeito que se tornou bizarramente familiar dado seu cotidiano de executar o chefe e ameaçar matar os filhos de suspeitos em troca de confissões.
A verossimilhança havia deixado de ser uma preocupação. E, com o fim da era Bush, é notório como tornar o agente crível se tornou mais custoso. "24 Horas" sempre foi uma coisa só: Jack Bauer e sua missão solitária de salvar o mundo. Se Jack não é mais aceitável nem verossímil, então não há do que se continuar falando. Não por isso, porém, será menor seu papel no imaginário pop político recente dos EUA.
RUBEM ALVES

A ilha da Páscoa

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Perto de 1400, a floresta já não existia e a última palmeira foi cortada, extinta com outras 21 espécies de plantas nativas
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A ILHA DE PÁSCOA está localizada no sul do Pacífico, em um local esquecido no meio do mar. Foi avistada por europeus em um domingo de Páscoa, em 1722. Ao contrário da maioria das ilhas daquela parte do mundo, o terreno não tinha grandes árvores e a grama era tão seca que, à distância, parecia areia. Os viajantes foram recebidos por uma comitiva de nativos em canoas frágeis e ao desembarcar ficaram surpreendidos com os grandes moais, gigantescas estátuas de pedra esculpidas na forma de rostos humanos, espalhadas pelo litoral, como se vigiassem o alto-mar.
Ainda hoje a ilha é cercada por uma nuvem de mistério. A chave do mistério é revelada ao voltarmos à época da chegada dos primeiros polinésios, a cerca de 1400 anos. Vindos do oeste, os Rapanui encontraram um pequeno paraíso.
Eram 166 quilômetros quadrados cobertos por uma densa floresta subtropical que crescia sobre o fértil solo de origem vulcânica. A fauna local permitia uma dieta muito rica para os moradores. Carne de golfinho, de foca e de 25 tipos de aves selvagens que eram assados com a lenha retirada da floresta. É o que mostram escavações arqueológicas em antigos sítios ocupados, graças a essa biodiversidade o número de habitantes aumentou bastante.
Boa parte dos recursos locais era gasta na intensa produção e no transporte de estátuas. Para movê-las, dezenas de pessoas utilizavam cordas e uma espécie de trenó feito de palmeiras e arrastavam os moais por 14 quilômetros até o litoral. A partir de 1200, a produção entrou em um ritmo mais acelerado e que durou pelos 300 anos seguintes, sendo preciso cada vez mais madeira, cordas e alimentos. Por volta de 1400, a floresta já não existia e a última palmeira foi cortada, extinta com outras 21 espécies de plantas nativas. Assim, não havia mais madeira e cordas para o transporte de moais nem troncos resistentes para a construção de barcos para a pesca em alto-mar.
Assim a pesca diminuiu. As colheitas também foram prejudicadas com o desmatamento e com o habitat devastado todas as espécies de aves foram extintas.
Todos esses fatores causaram uma grave falta de alimentos e o número de habitantes foi reduzido a um décimo dos 20 mil que habitaram a ilha no seu auge. E sem comida, os Rapanui apelaram para o canibalismo. Em vez de ossos de pássaros ou de golfinhos, passou-se a encontrar ossos humanos nas escavações de moradias desse período. Muitos deles foram quebrados para se extrair o tutano.
O canibalismo cometido pelos nativos serve como exemplo do que pode acontecer quando o meio ambiente é explorado até o limite e o seu equilíbrio é afetado: a civilização que depende de seus recursos é levada ao colapso. Ela se devora a si mesma, "canibalisticamente". E serve de lição para nossa geração que está vivendo as consequências do crescimento econômico, tal como aconteceu com os moradores da ilha de Páscoa. Eles viram a destruição da natureza que suas atividades estavam produzindo mas não tiveram a sabedoria de parar.
Seremos nós construtores de moais? O crescimento econômico e o crescimento tecnológico não serão os fantásticos moais que estamos construindo?

sexta-feira, 26 de março de 2010

Estudos Avançados - Corpo humano: mercadoria ou valor?

Estudos Avançados - Corpo humano: mercadoria ou valor?
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Os novos saberes que trouxeram novos poderes desencadearam uma onda de transformações na ordem social e natural da vida humana que se tornou, para muitos pensadores, um processo de desintegração planetária. As forças acumuladas e concentradas, mais do que constrangedoras e ameaçadoras, acabaram por alcançar o índice de destruição global. Não são poucos os que vêem no poderio das ciências e da técnica uma verdadeira catástrofe para o planeta inteiro, caso as questões da ética não voltem a ser uma preocupação dos homens das ciências.

Diante desta realidade Jean Bernard, em sua obra Da Biologia à Ética, desenvolve a questão daquilo que ele denomina no subtítulo “Os novos poderes da ciência. Os novos deveres do homem”. 10 Parece claro que o tema da ética, pelo menos enquanto se presta atenção à literatura recente, desemboca na Bioética. Fato evidenciado pelo tratamento que Bernard dá às questões éticas; no fundo, todas giram em torno da vida, que é a razão de ser da bioética. Não se trata da vida humana apenas, mas da vida em todas as suas manifestações.


III. O caminho da bioética

A bioética é, de alguma forma, a retomada em seu sentido original da definição de homem como Czoon Echon Logon, o que quer dizer que o homem é em primeiro lugar um ser vivo falante. O que faz com que ele se sinta um ser-no-mundo não como uma razão abstrata da qual não se pode fazer uma imagem. Esta retomada do homem como ser-no-mundo e como ser vivo conduz inevitavelmente para a sua dimensão corporal. A presença do homem no mundo se dá enquanto é corpo, mas um corpo vivo, responsável pela totalidade de suas manifestações. O homem deixou de ser tratado como um eu abstrato ou uma consciência transcendente possuidores de um corpo, para ser corpo. Portanto este não é mais visto como uma parte secundária da natureza humana, mas sua própria identidade, sua condição de ser, seu self.

Pelos limites deste texto não posso me estender sobre essa revolução copernicana na antropologia ocidental, mas fica claro que, graças a ela, foi possível traçar a questão da ética, não mais em termos da racionalidade universal, mas nos limites de um ser vivo, cuja existência é uma fenomenologia no tempo e no espaço.

Ninguém desconhece a exaltação do corpo que os meios de comunicação de massa fazem da imagem corporal, o que, de alguma maneira, contribuiu para que o debate bioético alcançasse um número maior de pessoas, fora do círculo dos cientistas e eticistas. Começa assim o resgate da dignidade do corpo como ponto fundamental da dignidade da pessoa humana.

Parece inquestionável que o debate bioético começou se articular em torno do controle sobre as diferentes intervenções no corpo humano, especialmente, sobre a ação da medicina. Segundo afirma Andorno “O ponto comum a todas as novas questões, é o valor do homem em sua corporeidade face aos desenvolvimentos biomedicais”. 11

A bioética teria surgiu como um debate sobre as atividades médicas. A questão era saber até onde pode chegar a intervenção da medicina em relação aos pacientes.

Os grandes avanços da biologia molecular, em especial a genética, multiplicaram os poderes dos médicos sobre seus doentes. A medicina hoje dispõe de alta tecnologia que deixou as transfusões de sangue algo simplório diante das possibilidades de transplantes de órgãos, células e genes, das técnicas cirúrgicas estéticas, da fecundação artificial e, por fim, da clonagem humana. Entretanto, segundo Engelhardt, a bioética teria o “objetivo de abordar vastas questões de relacionamento entre a moralidade e a ecologia”. 12

Diante de tamanhos poderes tecnocientíficos era preciso saber definir os deveres dos que podiam manipular tais tecnologias e, ao mesmo tempo, garantir os direitos daqueles que sofreriam as respectivas intervenções. Para isso foi preciso buscar fundamentos que justificassem o controle da aplicação dos novos conhecimentos sobre o ser vivo, humano ou não. Sem eles todos os esforços poderão ser inúteis. Em poucas palavras esta seria a tarefa dos bioeticistas. Uma tarefa que, até hoje, não se desenha muito fácil. As divergências são profundas a tal ponto que, sob certos aspectos, assumem contornos contraditórios.

Querer expor o tamanho das dificuldades para construir uma bioética que tenha características universais, é uma empreitada quase impossível, por isso para simplificar a minha exposição vou agrupar os estudiosos dos temas bioéticos em duas correntes, tentando apresentar os pontos de convergência e os pontos de divergência.

Um ponto de unanimidade é referente à pessoa humana, mas as divergências ocorrem na maneira como entender a pessoa humana. Acredito ser possível expor a questão a partir de duas posições. Uma encontra nas teses de Engelhardt seu referencial maior, a outra preserva alguns conceitos tirados do humanismo filosófico e da doutrina cristã.

Engelhardt sustenta suas posições numa ética totalmente profana, que ele denomina de secular. Tudo estaria centrado no homem. Em sua argumentação invoca a célebre frase de Protágoras: o homem é medida de todas as coisas. 13 Esta afirmação foi sempre interpretada sob o signo do relativismo, entretanto, segundo Engelhardt, “sem uma noção canônica da natureza humana ou uma visão essencial do significado das pessoas a maior parte dos elementos de um relativismo não pode ser evitada”. 14

Para explicitar melhor a questão vou continuar me valendo de suas próprias palavras. “São as pessoas que dão medida a todas coisas, porque ninguém mais existe para tomar as medidas, a não ser elas. Precisamos ser responsáveis por nós mesmos, e em nossos próprios termos, porque não aceitaremos qualquer outro reclamo independente, canônico e essencial de Deus sobre nós, e não podemos encontrar um reclamo na razão”. 15

Diante das possibilidades concretas de aumentar os instrumentos de intervenção do homem na vida em geral, Engelhardt é muito claro ao confiar na responsabilidade humana a tomada de decisões. “No futuro, diz ele, aumentará nossa capacidade de limitar e manipular a natureza humana para ir em busca dos objetivos estabelecidos pelas pessoas. Ao desenvolver nossa capacidade de nos envolvermos em engenharia genética, não apenas das células somáticas, mas da própria linha germinal humana, seremos capazes de dar forma e modelar a natureza humana à imagem e semelhança dos objetivos estabelecidos pelas pessoas humanas, e não pela natureza de Deus”. A esse respeito Engelhardt conclui afirmando que as mudanças da natureza humana podem ser tão radicais que nossos descendentes poderão ser classificados como uma nova espécie de seres vivos. Em sua argumentação diz: “Se nada há de sagrado a respeito da natureza humana (e nenhum argumento meramente secular pode revelar o que é sagrado), nenhum raciocínio será capaz de reconhecer por que, com os devidos cuidados, a natureza humana não pode sofrer mudanças radicais”. 16

A argumentação de Engelhardt em favor de sua tese é reconhecidamente muito consistente e de difícil refutação no interior de uma ética secular. Somente apelando para outros cânones, fundados na Natureza, na Razão ou em Deus, seria possível contra-argumentar. De alguma maneira é o que tentam fazer os defensores da preservação da natureza humana. Vários são os autores que defendem a preservação da essência da espécie humana. 17 A posição de todos eles gira em torno do conceito de pessoa. A pessoa deveria ser preservada a qualquer custo. Mas o primeiro obstáculo está em estabelecer o sentido de pessoa. Parece que o conceito de pessoa é de ordem jurídica ou filosófica. Em termos biológicos não se pode chegar a um conceito abstrato. A pessoa é definida como um ser autônomo, isto é, dotado de liberdade, e um ser consciente. Teoricamente está claro, mas quando o indivíduo não está em condições de exercer sua autonomia, ou quando, por qualquer motivo, não goza do estado de consciência, como?

O argumento a que se apela nestas circunstâncias é o de que a pessoa não começa pelo nascimento, nem somente existe quando tem todas as suas faculdades atuantes, pois ela é sempre pessoa, na plenitude ou em potencial. Assim, como diz Bernard, a vida começa na concepção. “O ovo humano acabado de formar, resultante da fecundação do óvulo pelo espermatozóide, contém em potência o ser completo que será mais tarde”... 18

Outro ponto de divergência aparece ao se falar em propriedade. Para Engelhardt o corpo de uma pessoa, seus talentos e suas habilidades também são primordialmente dela. E o exercício de propriedade concede ao proprietário o direito de fazer o que bem entende com o que é seu. Entretanto no lado oposto, o conceito de propriedade deve ser entendido como o direito de cada pessoa preservar o que ela é. Diz Andorno “A pessoa não tem a ‘propriedade’ de seu corpo, pois a pessoa não possui um corpo, ela é seu corpo”. 19 A pessoa se identifica com seu corpo, seja em si mesma, seja em relação ao outro, por isso a vida social deve acontecer dentro do respeito mútuo e não sob o regime de troca conforme as leis do mercado.

A bioética, em termo gerais, persegue a qualidade de vida e a dignidade da pessoa humana, entretanto, isto não quer dizer que seja esta forma de vida que a atualmente desfrutamos. Pode ser que criar um novo ser vivo seja a maneira mais adequada de preservação da vida, incluída a humana. A natureza foi altamente pródiga na criação de ilimitadas formas de vida.
São Paulo, sexta-feira, 26 de março de 2010


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ENTREVISTA
NORA VOLKOW

Abuso de drogas é uma doença crônica
Para cientista, vício afeta circuitos cerebrais que controlam o sistema de recompensa e o poder de decisão

A NEUROCIENTISTA e psiquiatra Nora Volkow, 53, foi a primeira mulher a assumir a direção do Nida (instituto nacional dos EUA para o abuso de drogas), em 2003. Eleita pela revista "Time" uma das cem pessoas mais influentes do mundo, foi pioneira no uso da tomografia para investigar o efeito das drogas. Publicou mais de 400 artigos, mostrando que a dopamina tem um papel fundamental em todas as dependências -das drogas ilícitas ao vício em jogos ou compulsão alimentar- e reforçando a ideia de que a dependência é uma doença crônica, que deve ser tratada como tal.

Divulgação

Nora Volkow, primeira mulher a dirigir o Nída (Instituto nacional dos EUA para o abuso de drogras) e pioneira no uso de tomografia para estudar dependência de drogas

IARA BIDERMAN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Volkow nasceu no México, na mesma casa em que seu bisavô, o revolucionário russo Leon Trotsky, foi assassinado. Na última quarta-feira, esteve em São Paulo, onde realizou uma palestra na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Leia a seguir trechos da entrevista que a cientista concedeu à Folha.




FOLHA - Como a sra. define a dependência?
NORA VOLKOW - É uma doença crônica e reincidente, que envolve mudanças no cérebro que levam ao consumo compulsivo de drogas apesar de suas consequências devastadoras. A decisão inicial de usar uma droga é voluntária, mas seu uso crônico pode precipitar mudanças cerebrais que comprometem os sistemas de recompensa, motivação e mesmo o livre-arbítrio.

FOLHA - Qual a diferença entre os mecanismos que levam ao vício em drogas e os que levam a outras dependências, como jogo compulsivo?
VOLKOW - Temos evidências de que os mecanismos cerebrais de dependências comportamentais, como jogo compulsivo, são similares aos produzidos por drogas. As substâncias psicoativas interferem nos mecanismos de recompensa, controlados pelo neurotransmissor dopamina. A maioria das drogas aumenta exageradamente a produção de dopamina, o que sobrecarrega o sistema de motivação e afeta circuitos cerebrais como a memória, a tomada de decisões e a motivação. O jogo compulsivo interfere nos mesmos circuitos cerebrais.

FOLHA - O que as tomografias nos contam sobre a dependência?
VOLKOW - Poder monitorar o cérebro em atividade nos permitiu realmente "ver" as mudanças associadas à dependência e seu risco. As tecnologias de imagem são instrumentos poderosos para combater o estigma, ainda muito difundido, de que abandonar o vício é uma questão de vontade. Demonstrar que [a dependência] é uma doença pode levar a uma enorme mudança na visão que médicos, políticos, o público em geral e muitos cientistas têm do vício e do dependente.

FOLHA - São essas evidências que levam a sra. a defender que o dependente não seja criminalizado?
VOLKOW - Não é meu papel dizer à sociedade como lidar com o status legal desses indivíduos, mas posso usar o conhecimento que tenho para informar os responsáveis pelas políticas públicas que a dependência é um distúrbio médico e que os tratamentos para ela funcionam. Pesquisas mostram que tratamentos feitos dentro do sistema prisional reduzem o abuso de drogas e a volta à prisão, o que pode ser uma forma de acabar com o círculo vicioso de abuso de droga e problemas com a justiça criminal.

FOLHA - E qual é sua opinião sobre a descriminalização da maconha?
VOLKOW - Tenho de me ater aos fatos. Não sabemos exatamente o que aconteceria nessas circunstâncias, mas sabemos que, quando uma droga se torna mais disponível, o uso cresce. É o que acontece com o tabaco e o álcool.

FOLHA - Quais são os melhores tratamentos disponíveis?
VOLKOW - Os mais eficazes envolvem o uso personalizado de medicamentos e terapias comportamentais. Em particular, a dependência a opiáceos pode ser tratada com bastante sucesso. Para as dependências severas, necessitamos de um sistema de cuidados crônicos, com a consciência de que recaídas são comuns e devem ser rapidamente tratadas.

FOLHA - E quais são as perspectivas de novos tratamentos?
VOLKOW - Graças à ciência básica, particularmente na área de genética, estamos identificando novos alvos para os medicamentos. Outra abordagem é o uso de medicamentos aprovados para outros usos, mas que podem ser úteis para tratar dependência. As técnicas de imagem cerebral também estão abrindo novas oportunidades terapêuticas. Por exemplo, uma técnica chamada neurofeedback pode permitir que a pessoa freie voluntariamente áreas específicas do cérebro para controlar a compulsão.


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DA REPORTAGEM LOCAL
O Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e a empresa sueca Getinge Group assinam hoje um protocolo de compra para a aquisição de um sistema robotizado de lavagem, esterilização e desinfecção de artigos médicos inédito na América Latina.
A assinatura será realizada durante a visita da rainha Silvia, da Suécia, à instituição. A expectativa é garantir melhor controle e prevenção das infecções hospitalares."

Folha de S.Paulo - Foco: Centro de radioterapia inaugurado em hospital simula "céu estrelado" - 26/03/2010

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quarta-feira, 24 de março de 2010

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Editorial

Erradicar a pobreza nas metrópoles



por Silvio Caccia Bava


Vamos nos colocar uma meta: erradicar a pobreza nas metrópoles brasileiras em 8 anos.

Seria isso possível? Se reunirmos condições políticas para tanto, como poderia ser feito?

Pobreza é, antes de tudo, a impossibilidade de decidir sobre sua própria vida. Neste sentido, erradicar a pobreza é incluir nas decisões públicas os pobres, suas representações coletivas, e descentralizar e democratizar radicalmente as instâncias públicas de decisão.

Pobreza é também a privação de direitos sociais. Para garantir a satisfação de necessidades básicas de todo cidadão, estamos falando de segurança alimentar, trabalho, moradia, saneamento básico, mobilidade, saúde, educação, cultura, esportes e lazer. O foco central deve ser a busca da redução das desigualdades. Portanto, a ênfase é atender com qualidade os que até então não tenham acesso a esses direitos.

O objetivo maior é a reapropriação da gestão das metrópoles por seus cidadãos. Por meio desta reapropriação se mobilizam recursos e se reorientam as políticas públicas para priorizar a redução das desigualdades.

Quais seriam os grandes desafios?

• Colocar o bem-estar da coletividade acima de quaisquer outros interesses.

• Cobrar a transparência da gestão pública e garantir mecanismos de controle, públicos e sociais, sobre essa gestão.

• Elaborar participativamente um projeto de erradicação da pobreza para garantir direitos sociais básicos a todos os cidadãos, com enfoque na dinamização dos circuitos curtos da economia, garantia de trabalho, novos paradigmas de produção e consumo, redução drástica da poluição ambiental, reconversão das matrizes energéticas e preservação do meio ambiente.

Este projeto de erradicação da pobreza equivale à realização de um novo pacto social, com caráter redistributivo, a exemplo do que muitos países fizeram no século XX. O Estado do Bem-Estar Social era isso, o resultado de um novo pacto, feito sob pressão dos movimentos sociais europeus e da ameaça constituída pelo bloco socialista.

A magnitude do desafio de erradicar a pobreza e as exigências de novos paradigmas para a vida em sociedade abrem novas possibilidades, como a de convocar um grande mutirão da sociedade, empregando os desempregados, especialmente os jovens, para produzir uma “economia verde” com planejamento e financiamento públicos: a execução a cargo da iniciativa privada; a fiscalização e o controle dos entes públicos e da sociedade civil.

Um programa de erradicação da pobreza deve começar por assegurar renda básica e trabalho remunerado a todos os desempregados, a partir de um novo projeto de cidade, orientado para garantir direitos e a “revolução verde”. E realizar investimentos maciços para produzir equipamentos e serviços públicos que universalizam direitos.

Apenas para ilustrar possibilidades:

Na questão do saneamento básico e da moradia, promover, em conjunto com a iniciativa privada responsável pelas construções, cursos de profissionalização, e contratar os trabalhadores do local beneficiado, especialmente os jovens, para a realização das obras previstas.

Na questão da mobilidade, já é um consenso priorizar o transporte coletivo. Isso significa fazer mais metrô e implantar nas principais vias o VLT – Veículo Leve sobre Trilhos –, modalidade de transporte mais eficaz depois do metrô. Trata-se do velho bonde, agora articulado, silencioso, com ar-condicionado e design futurista. Iniciativa que permite a reconversão, ao menos em parte, da indústria automobilística para a produção desses novos veículos coletivos.

Na questão ambiental, introduzir novas fontes de energia não poluentes, como a solar e a eólica, ampliar o número de parques e espaços públicos, arborizar a cidade, promover a educação ambiental e o manejo e reaproveitamento dos resíduos sólidos.

Muitas outras propostas podem ser apresentadas, fruto das mobilizações sociais e das inovações tecnológicas. Mas como efetivá-las se não há, principalmente, recursos?

Esta é justamente a questão. Depois que, globalmente, foram empregados mais de US$ 13 trilhões de fundos públicos, em um ano, para salvar o sistema financeiro internacional, não há mais argumentos para recusar o financiamento da melhoria de vida nas metrópoles. Além do que, não se trata de gasto, mas de investimento, com fortes repercussões na demanda do mercado interno, com uma melhoria da qualidade de vida que beneficia a todos.

Em 2009, o investimento federal em infraestrutura foi de R$ 32,2 bilhões, o maior em duas décadas. Isso corresponde a cerca de 1,03% do PIB brasileiro, o que fica muito aquém do Chile, por exemplo, que investiu 6,2% do seu PIB nessa mesma área.

Somados o setor público e privado no Brasil, os investimentos em infraestrutura se mantêm entre 2% e 2,5% há anos. Segundo especialistas, o Brasil precisa investir de 5% a 6% do seu PIB em infraestrutura para dar sustentação ao seu crescimento econômico de longo prazo.

Se num programa de erradicação da pobreza nas regiões metropolitanas do Brasil for empregado algo como 1% do PIB, anualmente, em 8 anos serão aproximadamente R$ 280 bilhões. Dinheiro que, se bem empregado, fará uma enorme diferença e muito beneficiará todos os cidadãos e cidadãs, assim como as empresas que se dedicarem a este enorme desafio.







Silvio Caccia Bava é editor de Le Monde Diplomatique Brasil e coordenador geral do Instituto Pólis.




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segunda-feira, 22 de março de 2010

ANDREA MURTA
DE WASHINGTON

Na maior vitória do governo Barack Obama até agora, a Câmara dos Representantes (deputados) dos EUA aprovou ontem a reforma do sistema de saúde, considerada a mais importante legislação social no país desde a criação da seguridade social, nos anos 1930. Nenhum republicano foi a favor da lei, já aprovada no Senado.
"Após mais de cem anos de frustração e décadas de tentativas, [...] provamos que ainda somos um povo capaz de grandes conquistas", disse Obama ao lado do vice, Joe Biden. "Esta é a imagem da mudança."
A expectativa é que o presidente sancione a lei nos próximos dias. A reforma torna obrigatória a aquisição de planos de saúde, sob pena de multa e com subsídio a indivíduos de baixa renda e pequenas empresas, e impede que seguradoras privadas neguem planos a pacientes com doenças preexistentes. Também cria um "pool" de planos privados com critérios mínimos estabelecidos pelo governo para oferecer seguros a não segurados.
Calcula-se que conseguirão acesso ao sistema de saúde estimados 32 milhões dos 46 milhões de pessoas que não têm plano de saúde no país. A transformação é a maior desde a criação dos programas públicos Medicare (para idosos) e Medicaid (para pobres) em 1965.
A negociação com a Casa Branca seguiu forte até poucas horas antes da votação. Obama divulgou à tarde uma ordem executiva (equivalente à medida provisória) que será assinada para reiterar que fundos públicos não serão usados para abortos. Só assim foi garantido o voto de democratas antiaborto reticentes quanto à reforma -o texto foi aprovado por 219 votos a 212, com 34 votos contra de deputados governistas.
"A ordem executiva dá garantias adicionais de que restrições ao uso de fundos públicos para abortos não poderão ser contornadas", disse a Casa Branca em comunicado. Antes dessa última concessão, Obama já havia visto a diluição de várias de suas ideias originais, inclusive desistindo de promover a criação de uma agência pública de seguros em competição com planos privados.
Republicanos se mantiveram unidos contra a reforma e até o início da votação exortaram democratas a votar "não". À tarde, partidários da direita cercaram o Congresso em protesto. "Essa reforma vai aumentar o custo dos seguros aos indivíduos e os gastos do governo na hora errada", disse a deputada republicana Cathy Rodgers.
Além de aprovar a lei de reforma que havia passado no Senado, os deputados aprovaram por 220 a 211, também sem voto republicano, um pacote de emendas orçamentárias que muda a multa a quem não tiver plano, aumenta o subsídio a famílias de baixa renda e adia o início de algumas regras.
Quando emendas versam apenas sobre orçamento, o Senado só precisa de maioria simples para finalizar o processo, conhecido como reconciliação. Democratas perderam a supermaioria (que evita obstruções) na Casa em janeiro e, por isso, não quiseram se arriscar a novo voto em políticas específicas.
A reforma em si, porém, não precisa esperar a aprovação das emendas orçamentárias para entrar em vigor -aguarda apenas a sanção de Obama.
As mudanças deverão custar US$ 938 bilhões em dez anos, segundo o Escritório de Orçamento do Congresso, e reduzir deficits federais futuros em US$ 143 bilhões.

sábado, 20 de março de 2010

IDEIAS RECICLADAS/ENTREVISTA

A inteligência ecológica ataca o falso marketing verde
Só o conhecimento pode reduzir o impacto ambiental do consumo, prega o autor americano Daniel Goleman

DÉBORA MISMETTI
EDITORA-ASSISTENTE DO VITRINE

O combate ao falso marketing verde e a diminuição do impacto ambiental causado pelo consumo são as novas palavras de ordem do psicólogo e escritor Daniel Goleman, 64.
Autor do best-seller "Inteligência Emocional", ele investe agora na "Inteligência Ecológica" (editora Campus Elsevier, R$ 69,90, 264 págs.). Nesse seu último livro, Goleman defende que a sociedade tome consciência dos processos de produção que envolvem tudo aquilo que se consome, e que sejam revistos os métodos industriais incompatíveis com a preservação do planeta e da saúde das pessoas. "Não é mais possível ficar no escuro", diz o autor.
Um dos caminhos para a transparência total, segundo o autor, é o trabalho dos ecologistas industriais -profissionais que sabem traçar toda a história de cada componente de um produto, calculando seus impactos ambientais e sociais. Assim, o ciclo de vida completo de uma mercadoria ficaria disponível para a análise dos consumidores, que decidiriam o que levar para casa com base em dados concretos, e não mais em falsas alegações ecológicas dos fabricantes. Esse trabalho minucioso, que começa a virar realidade em algumas partes do mundo, é o caminho para combater o falso marketing verde, diz Goleman.




FOLHA - Como diferenciar marketing verde de iniciativas reais para reduzir impacto ambiental?
DANIEL GOLEMAN - Agora, é muito difícil. Não há uma instituição independente que avalie o impacto do que compramos, ao menos não no Brasil. Mas já existe tecnologia para tornar isso possível. Nos EUA e na Europa isso já começou.

FOLHA - Quem deve responder pelas análises de ciclo de vida dos produtos? Governos, empresas?
GOLEMAN - Sou a favor de algo independente, como um grupo de ecologia industrial, para criar uma total transparência e dar informação aos consumidores. Um modelo para isso é o Good Guide. Ele é um corpo independente de cientistas e acadêmicos, que têm diversas fontes de informação. Eles oferecem um perfil completo do produto, de todo o seu impacto ambiental. Esse guia resume todas as avaliações em uma só, e dá uma nota simples, de 0 a 10. Com isso, você tem uma maneira de fazer escolhas reais.

FOLHA - Onde existe um desenvolvimento maior das análises de ciclo de vida dos produtos?
GOLEMAN - Estados Unidos, União Europeia e China. A China, surpreedentemente, está se tornando um centro de estudos desse assunto. Eles são a fábrica do mundo e estão percebendo que precisam entender por que seus clientes preferem um produto a outro, por que param de comprar algo. Todos os fabricantes serão forçados a dar todas as informações sobre seus processos de produção. O varejo começa a exigir isso. O modelo é o Walmart. Cerca de 20% dos produtos chineses são fabricados para o Walmart. E eles estão criando um índice próprio de impacto ambiental. Vão exigir as informações dos fabricantes, analisar, dar uma nota e colocá-la ao lado da etiqueta de preço, no supermercado. Isso está causando um pequeno terremoto na indústria. Uma outra cadeia de supermercados, a Safeway, com lojas na Califórnia, também está colocando essas notas, baseando-se nos rakings do Good Guide, que consideram o impacto de cada produto no aquecimento global, quanta energia ele consome, o impacto na biodiversidade, o impacto social. São questões duras, para as quais a indústria está sendo forçada a olhar. Nesta nova era de transparência, o consumidor vai votar com o seu dinheiro.

FOLHA - Não é muito poder para quem faz esses índices?
GOLEMAN - A organização que faz esse tipo de ranking tem que ser transparente. Quem quiser fiscalizar isso tem que ter acesso aos critérios para a escolha da nota. Não sei se o índice do Walmart, por exemplo, vai ser transparente. Se não for, isso pode dar vazão ao marketing verde, a coisas que parecem ecológicas, mas que só diminuem impacto em um aspecto. A transparência é a única coisa que pode acabar com esse "greenwashing": a coisa que parece verde, mas não é.

FOLHA - As condições de trabalho entram nesse ranking?
GOLEMAN - No do Good Guide entram. A pessoa que fez o Good Guide [o americano Dara O'Rourke] é um professor que passou anos em chão de fábrica em países do terceiro mundo. Ele é que denunciou a Nike e expôs o uso de trabalho indigno que a companhia fazia. Hoje em dia, a Nike lidera um movimento em seu setor para acabar com o uso de "sweatshops".

FOLHA - Como fazer o consumidor criar o hábito de consultar esses índices e mudar suas escolhas?
GOLEMAN - O Good Guide, por exemplo, está num aplicativo de iPhone. Você procura lá o xampu que vai comprar, o protetor solar, e ele mostra qual é a nota dele quanto ao impacto ambiental e se há similares melhores. Como a gente não costuma mudar muito nossa lista de compras no mercado, acho que não é tão difícil assim. Para as gerações mais novas, isso já faz parte do cotidiano. O trauma da geração das crianças de hoje é o risco de perder o planeta como nós o conhecemos. Agora, os mais velhos têm mais dificuldade de mudar de hábitos. Hoje, ainda é difícil fazer boas escolhas. Com a era da transparência, ficará mais fácil.
CESAR BENJAMIN

O Irã que se cuide

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A China tem bons motivos para não mexer no câmbio, e os EUA não têm fôlego para forçar a mudança
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PELA PRIMEIRA vez desde que se tornaram hegemônicos, os Estados Unidos mostram-se incapazes de liderar uma recuperação da economia mundial. O bastão passou para a China, que multiplica parcerias e já responde pela maior parte do crescimento global. Mesmo assim, está na berlinda, acusada de manter sua moeda artificialmente desvalorizada. Organismos multilaterais têm se pronunciado sobre isso, o governo americano já elevou tarifas de importação de produtos chineses e o Congresso discute a adoção de novas medidas, mais abrangentes, na mesma direção.
São crescentes as pressões para a valorização do yuan. A meu ver, isso não acontecerá: a China tem bons motivos para não mudar, e os EUA não têm fôlego para forçar a mudança.
Desde a década de 1970, quando romperam os Acordos de Bretton Woods, os EUA manejam livremente a emissão da moeda do mundo, que é a sua, como instrumento de hegemonia. Recentemente, a emissão de trilhões de dólares para salvar instituições financeiras, combinada com taxas de juros em torno de zero, reforçou a tendência à desvalorização do dólar, que é funcional para a economia americana, entre outros motivos porque desvaloriza suas dívidas. Cria-se, ao mesmo tempo, uma superoferta de recursos que perambulam pelo mundo. Países que adotam uma posição passiva e concedem ampla liberdade à entrada e saída de capitais, como o Brasil, orgulham-se de recebê-los em abundância. São muito elogiados. Mas expandem seu passivo externo de curto prazo e valorizam suas moedas, punindo os sistemas produtivos locais.
Para escapar das armadilhas inerentes a esse padrão monetário, a engenhosa solução chinesa foi atrelar o yuan ao dólar, de modo a neutralizar as flutuações desse último. Não vejo por que os chineses abandonariam essa política, que tem contribuído para o seu excepcional desempenho.
A capacidade de retaliação americana tem limitações, até porque afrontaria interesses internos. Mais que do câmbio, a atual disparidade comercial entre os dois países decorre das políticas de investimento das grandes empresas dos EUA, que deslocaram em grande escala atividades manufatureiras para a China. Uma parte do deficit americano é lucro das suas multinacionais. (Nos setores em que a produção física permaneceu nos EUA, como agricultura e certos produtos de alta tecnologia, o país asiático segue sendo um grande comprador.)
Basta observar as agendas dos dois países para constatar que o tempo está a favor da China. Os EUA lidam, principalmente, com deficit e guerras: consomem demais, poupam de menos, sustentam um sistema financeiro agigantado e quebrado, aumentam a presença militar no mundo, mantêm exércitos em operação em outros continentes e gerenciam Estados falidos, como o México. A China, sem pirotecnias presidenciais, amplia o mercado interno, moderniza a infraestrutura, aumenta a base produtiva instalada em seu território, incrementa a capacitação científica, aprofunda relações com os polos dinâmicos da Ásia e os países produtores de petróleo, investe pesadamente na exploração dos recursos africanos, consolida os laços com a Rússia, grande potência energética, e se torna o principal parceiro comercial da América do Sul, desbancando até o Brasil.
Não é o câmbio que explica isso. É um projeto nacional consistente. Para tentar contê-lo, talvez os EUA precisem gerar uma gigantesca instabilidade internacional. O Irã que se cuide.

CESAR BENJAMIN, 55, editor da Editora Contraponto e doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de "Bom Combate" (Contraponto, 2006). Escreve aos sábados, a cada 15 dias, nesta coluna.

cesarben@uol.com.br

quinta-feira, 18 de março de 2010

w.klepsidra.net
Pós-Modernidade e
Teoria da História


Marco Antunes de Lima
marco@klepsidra.net
5º Ano - História/USP
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INTRODUÇÃO



O norte-americano Francis Fukuyama, em 1989, declarou o fim da História, pois para ele a História havia chegado ao seu final e que todos os países do mundo se juntariam ao redor de um sistema político e econômico, chamado de democrático, a qual muitos chamam de neoliberal. O futuro da humanidade teria apenas um caminho, o pensamento único e que a História teria acabado. Segundo Carlos Barros a reação de muitos historiadores foi de hostilidade, pois além de não concordarem com Fukuyama, muitos entenderam que ele exterminou a história com "h" minúsculo, como sucessão de fatos, e não que exterminou com a História universal, com H maiúsculo[1]. Fukuyama reviu o seu trabalho e chegou a desmenti-lo, em 1998, em entrevista ao New York Times, tendo visto as várias crises econômicas que se seguiram nos anos 90.





Não acreditamos que a História tenha acabado, assim como também que a "ciência" história também. Mas que a "ciência" história passa por uma crise teórica atualmente. Esta crise de paradigma ocorre desde a década de 70 e será isto que propomos discutir nesse trabalho. Propomos expor e discutir aqui a crise existente nestas últimas décadas na teoria da história. Propomos discutir o que vem acontecendo com a teoria da história nessa Era Pós-Moderna, e talvez tentar discutir qual será o futuro da teoria da história.





A PÓS-MODERNIDADE


Podemos dizer que uma nova era na sociedade ocidental se iniciou no início dos anos 70. O fim dos movimentos culturais da década de 60, e o início de uma nova era do capitalismo geraram o que podemos chamar da sociedade pós-moderna.







Nicolau Sevcenko
O historiador Nicolau Sevcenko nos diz que nos encontramos nos últimos anos no "loop da montanha russa", que seria a terceira fase da montanha russa, e pode ser considerado "a síncope final e definitiva, o climax da aceleração precipitada, sob cuja intensidade extrema relaxamos nosso impulso de reagir, entregando os pontos entorpecidos, aceitando resignadamente ser conduzidos até o fim pelo maquinismo titânico. Essa etapa representaria o atual período, assinalado por um novo surto dramático de tansformações, a Revolução da Microeletrônica"[2]. Sevcenko ainda acrescenta que o mundo vai se tornado cada vez mais imprevisível, irresistível e incompreensível. Não há, na sociedade uma esperança para o futuro, nada podemos prever.







Serão nos anos 80 que entraremos de vez nessa nova era, a chamada terceira revolução industrial, ou a revolução científico-tecnológica. Será nessa década que começará a surgir a nova concepção política e econômica do mundo, a qual, na década seguinte, a de 90, viveremos o seu ápice: o neoliberalismo. As duas grande figuras políticas que deram início a essa nova concepção do capitalismo foram o ex-presidente norte americano Ronald Reagan e a ex-primeira ministra inglesa Margareth Tatcher, ou "a dama de ferro".

Ronald Reagan



Esses dois políticos iniciaram a política de desmonte do Estado do Bem Estar Social, criado após a Segunda Grande Guerra, e da liberalização total do mercado, sendo este, que aos poucos, determinaria todas as ações dos homens. Esse processo se espalhará por todo o mundo nas décadas de 80 e 90, e, após a queda do comunismo no final dos anos 80 será tratado como "o pensamento único", termo muito contestado. Segundo Fredric Jameson "a emergência da pós-modernidade está estritamente relacionada à emergência desta nova fase do capitalismo avançado, multinacional e de consumo"[3].


Esse novo mundo pós-moderno neoliberal gerou várias crises em vários aspectos de nossa sociedade. Criou-se um novo perfil de sociedade, bem diferente daquele existente nos anos 60; agora nos encontramos em um momento de crise de transcendência, pois assim como na virada do século XIX com o século XX, nos encontramos em um período onde as mudanças tecnológicas são tão rápidas e avassaladoras que perdemos o nosso espírito de transcendência tão discutido por intelectuais do século XX. Nos encontramos novamente em uma era de racionalidade, onde o mais importante é a técnica e o seu tecnicismo, onde o que importa é a competição entre os homens, e onde existe uma ética narcisista, onde o mercado (que parece mais uma entidade sobrenatural) regula todas as ações. Esse período em que vivemos hoje gerou várias crises vindas da crise inicial de transcendência. Uma grande crise ideológica, política e de valores se criou e seguindo à esta uma crise de sociabilidade. Os homens, perderam, principalmente nos grandes centros urbanos (como muitos intelectuais discutem), o sentido de serem um animal social; eles não mais se socializam, ou se socializam de uma forma mínima possível. Podemos dizer que não existe mais alteridade, o homens, e as massas se tornaram indiferentes uns aos outros, gerando uma espécie de niilismo pós moderno.


Desde os anos 70, essa crise ideológica, política, de valores afetaram as ciências humanas em geral. Com a história não foi diferente, tanto no seu âmbito teórico, prático e na sua função social.




A CRISE NA TEORIA E A HISTÓRIA PÓS-MODERNA


Pretendemos, neste trecho do trabalho, explicar a crise por que passa a teoria da história nas últimas três décadas, mostrando as diferentes idéias expostas por vários historiadores e filósofos.


No início dos anos 70 veio a tona uma nova corrente historiográfica, vinda da escola francesa, que se auto denominava "Nova História". Essa Nova História tinha como característica um retorno ao estudo do sujeito, e "se originou associada à Escola de Annales e que, além de lutar por uma história total, opõe-se totalmente ao paradigma tradicional da historiografia"[4]. Essa nova historiografia também foi denominada como "história das mentalidades", onde a história se preocupa com tudo, onde não há paradigmas, e a história é subjetiva, ao contrário da história tradicional. A Nova História trará muitas novas questões ao estudo da história, as quais discutiremos mais adiante, como por exemplo a não necessidade de um paradigma e a questão da narrativa.


Atualmente, a história, sem dúvida alguma, sofre uma crise de paradigmas, não possuímos nenhum "ismo" para seguir. É claro que falamos de uma maneira geral, pois os paradigmas existentes anteriormente não desapareceram por completo e ainda são praticados pela historiografia, a exemplo da história marxista. Elias Saliba nos diz que "nos encontramos meio 'embasbacados' diante do concreto, em estado de empatia constante com a singularidade. Este mundo do imprevisível parece-nos preferível do que nos alojar num sistema ordenado de fixação e explicação do real, num 'ismo' qualquer, numa teoria. Como Tântalos, procuramos uma armação teórica, mas temos medo dela, porque adivinhamos a desilusão posterior e a espécie de sofrimento psicológico daí decorrente - o que só aumenta o clima de desencanto e inutilidade de esforço"[5]. Essa falta de paradigmas para a história talvez exista devido ao desencanto, citado por Saliba, e também devido a desconfiança do futuro que há hoje em dia. Como não possuímos mais uma idéia do futuro, já que ele se tornou imprevisível, a história não é mais escrita sob um paradigma, e sim a história é escrita para o presente. Segundo Josep Fontana "esse caráter imprevisível do futuro tem sido, como já disse, a origem de boa parte de nosso desânimo e do nosso desconcerto"[6]. Essa desconfiança aumentou ainda mais com a queda do comunismo, indo por terra a escrita da história ao estilo marxista, que previa um futuro.







Hayden White
Então a história não possuí mais sentido? Muitos historiadores pós-modernos pensam o contrário: a história, agora, possuí muitos sentidos. Muitos historiadores julgam que não necessitamos de novos paradigmas, não precisamos achar um logo, para podermos sair da crise. Carlos Barros considera essa posição conservadora, pois perpetua somente o presente. Hayden White nos diz que a vida "será mais bem vivida se não tiver um sentido único, mas muitos sentidos diferentes. (...) precisamos de uma história que nos eduque para a descontinuidade de um modo como nunca se fez antes; pois a descontinuidade, a ruptura e o caos são o nosso destino."[7].


Podemos dizer que White está falando que a História, e a sua prática historiográfica, não necessitam de um único sentido, e sim pode possuir vários. A história tem muitas histórias, podendo-se perceber isso nas discussões da Nova História, onde tudo é história. Esse questionamento dos sentidos, demonstra um certo desprezo pela teoria da história, principalmente da questão dos paradigmas, pois não é necessário teoria se são diversos os sentidos das coisas. Muitos historiadores discordam dessa posição e acham que a história, assim como a vida, possuem um sentido e a teoria deve discuti-lo.

Uma questão das mais discutidas dentro da teoria da história pós-moderna é a questão da linguagem e da narrativa. A linguagem é colocada, muitas vezes, no centro das discussões sobre a história e a sua escrita no nosso mundo contemporâneo. Gadamer nos fala que é através da linguagem que nos aproximamos dos fatos e que é ela que nos possibilita interpretar os resultados de nossas observações[8]. A prática da história também é linguagem, e a teoria da história atual a considera de extrema importância, pois é através da linguagem que o historiador retrata as suas observações da História, daí a importância, nos estudos da teoria da história (e não só) da hermenêutica, que busca compreender, através da linguagem, como é que se produz o significado da História dentro da historiografiia..

A narrativa, e o discurso são temas muito discutidos pelos intelectuais da pós-modernidade. Segundo Linda Hutchen "o que a escrita pós-modernista, tanto da história, como da literatura nos ensinou é que tanto história quanto ficção são discursos, que os dois constituem sistemas de significação pelo qual nós fazemos sentido do passado"[9]. Hutchen está nos mostrando que a história, como a literatura se equiparam pois são discursos construídos, ou seja, para ela, a história é construída, através da narrativa e da linguagem pelos seus autores. Para Roland Barthes "o discurso histórico é essencialmente elaboração ideológica, ou para ser mais preciso, imaginário, se é verdade que o imaginário é a linguagem pela qual o enunciante de um discurso (entidade puramente linguística) 'preenche' o sujeito da enunciação (entidade psicológica ou ideológica)"[10]. Roger Chartier percorre caminho parecido dizendo que "a História é um discurso que aciona construções, composições e figuras que são as mesmas da escrita narrativa, portanto da ficção, mas é um discurso que, ao mesmo tempo, produz um corpo de enunciados científicos, se entendermos por isso, com Michel de Certeau 'a possibilidade de estabelecer um conjunto de regras que permitem controlar operações proporcionais à produção de objetos determinados' "[11]. Chartier nos traz algo importante para discutirmos, pois nos mostra que, como muito se discute hoje em dia, a história é uma narrativa, assim como a literatura, e que esta possuí um discurso montado, mas acrescenta que não é uma narrativa qualquer, pois tem as suas regras com um corpo de enunciados, sendo assim uma ciência. Peter Burke comenta sobre a forma narrativa que vem tomando a história hoje em dia, porém diz que a narrativa não pode ser a narrativa tradicional, superficial no acontecimentismo e "para tanto, é necessário densificar a narrativa, e para isso, Burke apresenta quatro soluções encontradas nas obras de outros historiadores: a micro-narrativa, narração da história de populares no tempo e no espaço, observando a presença das estruturas; utilizar várias vozes afim de captar os conflitos e as permanências; redigir de trás para frente, mostrando o peso do passado; e, finalmente, encontrar o relacionamento dialético entre acontecimento e estrutura. Burke aposta na primeira solução, não por preferência, mas por observar que a mesma já está crescendo"[12].



CONCLUSÕES

Neste trecho do trabalho pretendemos tirar algumas conclusões e opiniões sobre a teoria da história na pós-modernidade. Mas, acima de tudo, pensamos que colocaremos mais questões para serem debatidas do que respostas.

Primeiramente, discutiremos se a teoria da história realmente se encontra em uma crise pois não possui um paradigma. Será que precisamos mesmo de um paradigma, ou de paradigmas? Carlos Barros propõe um novo paradigma para a história. Ele nos diz que que o novo paradigma será digital, devido a nova era digital que vivemos, com internet, CD-ROM, etc., e desse modo a história será mais global tanto do ponto vista teórico quanto empírico. O novo paradigma será baseado nas exigências culturais e educativas e nas exigências políticas e sociais que vem ocorrendo ao final da década de 90 e no começo desse novo século. Para ele também é necessária a redefinição da história como ciência. Por fim, pensa que o novo paradigma não pode ser o simples retorno à história tradicional, mas tampouco a fuga para adiante da fragmentação pós-moderna. Ou seja, nos parece que Barros não tem um paradigma. Achamos importante a necessidade da discussão sobre como deve ser a escrita da história, mas achamos que não é necessário achar um paradigma, pois a verdade histórica, em nossa opinião não existe, ela é construída por cada historiador. Na nossa opinião a história possui vários sentidos, tanto para aqueles que a escrevem como para aqueles que a lêem.

A Pós-modernidade gerou uma dúvida na cabeça dos pensadores, a de qual e como será o nosso futuro, gerando crises historiográficas e de paradigmas. O homem possui a necessidade de conhecer o seu futuro, e as últimas décadas mostraram que ele é imprevisível. Mas será que foram somente as últimas décadas? Para nós, o futuro foi, é, e sempre será imprevisível, simplesmente porque ele é futuro. Mas, apesar de imprevisível ele pode ser construído pelas pessoas. a história, seja ela qual for (podendo ser de tudo) tem fundamental importância na construção do imprevisível futuro, pois é do estudo do passado que podemos, talvez, nos entender hoje e construir o futuro. Ao contrário do que disse uma vez Fukuyama, e parafraseando Josep Fontana: "nunca é o fim da história, somente eu sempre nos encontramos no fim de uma história e no começo de outra ou de outras cujo o curso não podemos predizer com nenhum método, por refinado e científico que seja, não só pela complexidade da previsão, como também porque a trajetória do porvir do que entre todos nós queiramos e saibamos fazer".[13]

sábado, 6 de março de 2010

Enviado por Ricardo Noblat - 6.3.2010| 3h40m
Deu na Veja
A casa caiu

O Ministério Público quebra sigilo da Bancoop e descobre que dirigentes da Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo lesaram milhares de associados, para montar um esquema de desvio de dinheiro que abasteceu a campanha de Lula em 2002 e encheu os bolsos de dirigentes do PT. Eles sacaram ao menos 31 milhões de reais na boca do caixa

De Laura Diniz:

Depois de quase três anos de investigação, o Ministério Público de São Paulo finalmente conseguiu pôr as mãos na caixa-preta que promete desvendar um dos mais espantosos esquemas de desvio de dinheiro perpetrados pelo núcleo duro do Partido dos Trabalhadores: o esquema Bancoop.

Desde 2005, a sigla para Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo virou um pesadelo para milhares de associados. Criada com a promessa de entregar imóveis 40% mais baratos que os de mercado, ela deixou, no lugar dos apartamentos, um rastro de escombros.

Pelo menos 400 famílias movem processos contra a cooperativa, alegando que, mesmo tendo quitado o valor integral dos imóveis, não só deixaram de recebê-los como passaram a ver as prestações se multiplicar a ponto de levá-las à ruína (veja depoimentos abaixo). Agora, começa-se a entender por quê.

Na semana passada, chegaram às mãos do promotor José Carlos Blat mais de 8 000 páginas de registros de transações bancárias realizadas pela Bancoop entre 2001 e 2008.

O que elas revelam é que, nas mãos de dirigentes petistas, a cooperativa se transformou num manancial de dinheiro destinado a encher os bolsos de seus diretores e a abastecer campanhas eleitorais do partido.

"A Bancoop é hoje uma organização criminosa cuja função principal é captar recursos para o caixa dois do PT e que ajudou a financiar inclusive a campanha de Lula à Presidência em 2002."

Na sexta-feira, o promotor pediu à Justiça o bloqueio das contas da Bancoop e a quebra de sigilo bancário daquele que ele considera ser o principal responsável pelo esquema de desvio de dinheiro da cooperativa, seu ex-diretor financeiro e ex-presidente João Vaccari Neto.

Vaccari acaba de ser nomeado o novo tesoureiro do PT e, como tal, deve cuidar das finanças da campanha eleitoral de Dilma Rousseff à Presidência.

Um dos dados mais estarrecedores que emergem dos extratos bancários analisados pelo MP é o milionário volume de saques em dinheiro feitos por meio de cheques emitidos pela Bancoop para ela mesma ou para seu banco: 31 milhões de reais só na pequena amostragem analisada.

O uso de cheques como esses é uma estratégia comum nos casos em que não se quer revelar o destino do dinheiro. Até agora, o MP conseguiu esquadrinhar um terço das ordens de pagamento do lote de trinta volumes recebidos.

Metade desses documentos obedecia ao padrão destinado a permitir saques anônimos. Já outros cheques encontrados, totalizando 10 milhões de reais e compreendidos no período de 2003 a 2005, tiveram destino bem explícito: o bolso de quatro dirigentes da cooperativa, o ex-presidente Luiz Eduardo Malheiro e os ex-diretores Alessandro Robson Bernardino, Marcelo Rinaldo e Tomas Edson Botelho Fraga – os três primeiros mortos em um acidente de carro em 2004 em Petrolina (PE).

Eles eram donos da Germany Empreiteira, cujo único cliente conhecido era a própria Bancoop. Segundo o engenheiro Ricardo Luiz do Carmo, que foi responsável por todas as construções da cooperativa, as notas emitidas pela Germany para a Bancoop eram superfaturadas em 20%.

A favor da empreiteira, no entanto, pode-se dizer que ela ao menos existia de fato. De acordo com a mesma testemunha, não era o caso da empresa de "consultoria contábil" Mizu, por exemplo, pertencente aos mesmos dirigentes da Bancoop e em cuja contabilidade o MP encontrou, até o momento, seis saídas de dinheiro referentes ao ano de 2002 com a rubrica "doação PT", no valor total de 43 200 reais. Até setembro do ano passado, a lei não autorizava cooperativas a fazer doações eleitorais.

Outro frequente agraciado com cheques da Bancoop tornou-se nacionalmente conhecido na esteira de um dos últimos escândalos que envolveram o partido.

Freud "Aloprado" Godoy – ex-segurança das campanhas do presidente Lula, homem "da cozinha" do PT e um dos pivôs do caso da compra do falso dossiê contra tucanos na campanha de 2006 – recebeu, por meio da empresa que dirigia até o ano passado, onze cheques totalizando 1,5 milhão de reais, datados entre 2005 e 2006.

Nesse período, a Caso Sistemas de Segurança, nome da sua empresa, funcionava no número 89 da Rua Alberto Frediani, em Santana do Parnaíba, segundo registro da Junta Comercial.

Vizinhos dizem que, além da placa com o nome da firma, nada indicava que houvesse qualquer atividade por lá. O único funcionário visível da Caso era um rapaz que vinha semanalmente recolher as correspondências num carro popular azul. Hoje, a Caso se transferiu para uma casa no município de Santo André, na região do ABC.

Depoimentos colhidos pelo MP ao longo dos últimos dois anos já atestavam que o dinheiro da Bancoop havia servido para abastecer a campanha petista de 2002 que levou Lula à Presidência da República .

VEJA ouviu uma das testemunhas, Andy Roberto, que trabalhou como segurança da Bancoop e de Luiz Malheiro entre 2001 e 2005.

Em depoimento ao MP, Roberto afirmou que Malheiro, o ex-presidente morto da Bancoop, entregava envelopes de dinheiro diretamente a Vaccari, então presidente do Sindicato dos Bancários e indicado como o responsável pelo recolhimento da caixinha de campanha de Lula.

Em entrevista a VEJA, Roberto não repetiu a afirmação categoricamente, mas disse estar convicto de que isso ocorria e relatou como, mesmo depois da eleição de Lula, entre 2003 e 2004, quantias semanais de dinheiro continuaram saindo de uma agência Bradesco do Viaduto do Chá, centro de São Paulo, supostamente para o Sindicato dos Bancários, então presidido por Vaccari.

"A gente ia no banco e buscava pacotes, duas pessoas escoltando uma terceira." Os pacotes, afirmou, eram entregues à secretária de Luiz Malheiro, que os entregava ao chefe. "Quando essas operações aconteciam, com certeza, em algum horário daquele dia, o Malheiro ia até o Sindicato dos Bancários. Ou, então, se encontrava com o Vaccari em algum lugar."

Os depoimentos colhidos pelo MP indicam que o esquema de desvio de dinheiro da Bancoop obedeceu a uma trajetória que já se tornou um clássico petista.

Começou para abastecer campanhas eleitorais do partido e acabou servindo para atender a interesses particulares de petistas. Entre os cheques em poder do MP, por exemplo, está um em que a empresa Mizu, de "consultoria contábil", doa 7 000 reais a um certo Centro Espírita Redenção, em 2003.

Muitas vezes, dirigentes da Bancoop nem se preocuparam em usar as empresas "prestadoras de serviços" que montaram com o objetivo de sugar a cooperativa para esconder sua ganância.

O MP encontrou quatro cheques da Bancoop, totalizando 35 000 reais, para uma ONG de Luiz Malheiro em São Vicente dedicada a deficientes auditivos – curiosamente, o mesmo endereço do centro espírita. Os cheques foram emitidos entre novembro de 2003 e março de 2005.

Tanta lambança, aliada a uma gestão ruinosa, fez com que a Bancoop mergulhasse num estado de pré-liquidação. Em 2004, com Lula já eleito, Luiz Malheiro foi pedir ao "chefe" Berzoini, então ministro do Trabalho, "ajuda" para reerguer a cooperativa.

Quem relatou o episódio ao MP foi seu irmão, Hélio Malheiro. Em 2008, dizendo-se sob ameaça de morte, Hélio Malheiro ingressou no Programa de Proteção à Testemunhas da secretaria estadual de justiça de São Paulo, no qual se encontra até hoje.

Em dezembro de 2004, depois que Luiz Malheiro já havia morrido, a "ajuda" chegou à Bancoop. Com apoio de Berzoini e corretagem da Planner (investigada pela CPI dos Correios sob a acusação de ter causado um prejuízo de 4 milhões de reais ao fundo de pensão da Serpro), a cooperativa associou-se a um Fundo de Investimentos em Direito Creditórios (FIDC), entidade que negocia recebíveis, e captou 43 milhões de reais no mercado – 85% dos papéis foram adquiridos por fundos de pensão de estatais controlados por petistas ligados ao grupo de Berzoini e Vaccari.

O investimento resultou na abertura de um inquérito pela Polícia Federal por suspeita de que os fundos de pensão teriam sido prejudicados para favorecer a Bancoop.

João Vaccari Neto é do tipo que se orgulha de ser chamado de "um petista histórico", o que, no jargão do partido, significa, entre outras coisas, que ganhou boa parte da vida dirigindo entidades de classe e do partido. Aos 19 anos, começou a trabalhar como escriturário do Banespa.

Ficou lá apenas dois anos. Depois disso, entrou no sindicato de sua categoria e nunca mais pegou no pesado. Participou de três diretorias da Central Única dos Trabalhadores (CUT), foi secretário de relações internacionais da entidade e presidiu o Dieese.

Atuou sempre como braço de apoio de Berzoini, a quem sucedeu na presidência do Sindicato dos Bancários de São Paulo em 1998. Apesar de não ter a projeção política do amigo, Vaccari conquistou a amizade de Lula, coisa que Berzoini jamais conseguiu obter.

Vaccari, como mostra agora a investigação do MP, tem mais em comum com seu antecessor, Delúbio Soares, do que a barba grisalha. E, como Freud Godoy, está mergulhado até os últimos e ralos fios de cabelo no escândalo dos aloprados.

Há duas semanas, um juiz de primeira instância contrariou decisão do Tribunal Superior Eleitoral e determinou a cassação do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, por suposto recebimento ilegal de doação de campanha.

A sentença, que colocou em risco a segurança jurídica, foi suspensa. Na semana passada, o TSE divulgou as regras que vão orientar as eleições deste ano.

São medidas moralizadoras, que incluem a obrigatoriedade da divulgação de quaisquer processos ou acusações criminais que pesem sobre o candidato e que dificultam manobras de doadores que tenham por finalidade esconder a origem do dinheiro.

Tudo isso mostra quanto o país está interessado em aprimorar seu sistema de financiamento eleitoral e proteger-se dos efeitos tão deletérios como conhecidos que sua distorção pode causar.

Ao indicar pessoalmente alguém com o prontuário de João Vaccari para tomar conta das finanças do PT e da campanha eleitoral de Dilma Rousseff, o presidente Lula sinaliza que, ao contrário do resto do Brasil, não está nem um pouco empenhado em colaborar na faxina.

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Uma pergunta que continua no ar

Quem deu o dinheiro para o dossiê dos aloprados? Entre os envolvidos, Vaccari era o único sentado numa montanha de reais

João Vaccari Neto e Freud Godoy, envolvidos agora no esquema Bancoop, já atuaram juntos em passado recente. Pelo menos é o que sugere o registro dos telefonemas trocados pela dupla às vésperas do estouro do escândalo dos "aloprados" – como ficaram conhecidos os petistas apontados pela Polícia Federal como integrantes da quadrilha que tentou comprar um dossiê supostamente comprometedor para tucanos durante a campanha presidencial de 2006.

No caso de Vaccari, então presidente da Bancoop, os vestígios de participação no caso guardam cheiro de tinta fresca. Foi para ele que Hamilton Lacerda – na ocasião coordenador de comunicação da campanha do senador Aloizio Mercadante – telefonou uma hora antes de fazer a entrega de parte do 1,7 milhão de reais que seria usado para comprar o dossiê.

O episódio teve início quando a família de Luiz Antônio Vedoin, chefe da máfia dos sanguessugas, ofereceu a petistas documentos que supostamente comprometeriam tucanos. Deles, faria parte uma entrevista em que os Vedoin acusariam o candidato do PSDB, José Serra, de envolvimento na máfia que distribuía dinheiro a políticos em troca de emendas ao Orçamento para compras de ambulância.

Ricardo Berzoini, então presidente do PT, foi acusado de ter dado a autorização para a compra do dossiê. Valdebran Padilha da Silva, filiado ao PT do Mato Grosso, e Gedimar Pereira Passos, advogado e ex-policial federal, seriam os encarregados de pagar os Vedoin com o dinheiro levado por Hamilton Lacerda.

Valdebran e Gedimar foram presos pela PF num hotel Íbis, em São Paulo, depois de terem recebido o dinheiro de Lacerda e antes de entregá-lo aos Vedoin.

Jorge Lorenzetti, churrasqueiro do presidente Lula, e Oswaldo Bargas, ex-secretário de Berzoini no Ministério do Trabalho, também estiveram envolvidos no episódio. Eles tentaram negociar com a revista Época uma entrevista em que os Vedoin fariam falsas acusações de corrupção contra Serra. A entrevista acabou sendo publicada pela revista Istoé.

Nas investigações que se seguiram à prisão de Valdebran e Gedimar, a PF identificou uma intensa troca de telefonemas entre os envolvidos, incluindo diversas ligações de Berzoini para a empresa Caso Sistemas de Segurança, hoje em nome da mulher de Freud Godoy.

Godoy seria o contato de Gedimar no alto escalão do PT. Quanto a Vaccari, bem, até onde se sabe, era o único dos aloprados que estava sentado sobre uma montanha de dinheiro, a Bancoop.

O fato de Hamilton Lacerda ter ligado para ele logo depois de ter cumprido a sua missão faz fervilhar a imaginação dos que até hoje se perguntam: de onde, afinal, veio o dinheiro dos aloprados?
Enviado por Ricardo Noblat - 6.3.2010| 3h40m
Deu na Veja
A casa caiu

O Ministério Público quebra sigilo da Bancoop e descobre que dirigentes da Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo lesaram milhares de associados, para montar um esquema de desvio de dinheiro que abasteceu a campanha de Lula em 2002 e encheu os bolsos de dirigentes do PT. Eles sacaram ao menos 31 milhões de reais na boca do caixa

De Laura Diniz:

Depois de quase três anos de investigação, o Ministério Público de São Paulo finalmente conseguiu pôr as mãos na caixa-preta que promete desvendar um dos mais espantosos esquemas de desvio de dinheiro perpetrados pelo núcleo duro do Partido dos Trabalhadores: o esquema Bancoop.

Desde 2005, a sigla para Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo virou um pesadelo para milhares de associados. Criada com a promessa de entregar imóveis 40% mais baratos que os de mercado, ela deixou, no lugar dos apartamentos, um rastro de escombros.

Pelo menos 400 famílias movem processos contra a cooperativa, alegando que, mesmo tendo quitado o valor integral dos imóveis, não só deixaram de recebê-los como passaram a ver as prestações se multiplicar a ponto de levá-las à ruína (veja depoimentos abaixo). Agora, começa-se a entender por quê.

Na semana passada, chegaram às mãos do promotor José Carlos Blat mais de 8 000 páginas de registros de transações bancárias realizadas pela Bancoop entre 2001 e 2008.

O que elas revelam é que, nas mãos de dirigentes petistas, a cooperativa se transformou num manancial de dinheiro destinado a encher os bolsos de seus diretores e a abastecer campanhas eleitorais do partido.

"A Bancoop é hoje uma organização criminosa cuja função principal é captar recursos para o caixa dois do PT e que ajudou a financiar inclusive a campanha de Lula à Presidência em 2002."

Na sexta-feira, o promotor pediu à Justiça o bloqueio das contas da Bancoop e a quebra de sigilo bancário daquele que ele considera ser o principal responsável pelo esquema de desvio de dinheiro da cooperativa, seu ex-diretor financeiro e ex-presidente João Vaccari Neto.

Vaccari acaba de ser nomeado o novo tesoureiro do PT e, como tal, deve cuidar das finanças da campanha eleitoral de Dilma Rousseff à Presidência.

Um dos dados mais estarrecedores que emergem dos extratos bancários analisados pelo MP é o milionário volume de saques em dinheiro feitos por meio de cheques emitidos pela Bancoop para ela mesma ou para seu banco: 31 milhões de reais só na pequena amostragem analisada.

O uso de cheques como esses é uma estratégia comum nos casos em que não se quer revelar o destino do dinheiro. Até agora, o MP conseguiu esquadrinhar um terço das ordens de pagamento do lote de trinta volumes recebidos.

Metade desses documentos obedecia ao padrão destinado a permitir saques anônimos. Já outros cheques encontrados, totalizando 10 milhões de reais e compreendidos no período de 2003 a 2005, tiveram destino bem explícito: o bolso de quatro dirigentes da cooperativa, o ex-presidente Luiz Eduardo Malheiro e os ex-diretores Alessandro Robson Bernardino, Marcelo Rinaldo e Tomas Edson Botelho Fraga – os três primeiros mortos em um acidente de carro em 2004 em Petrolina (PE).

Eles eram donos da Germany Empreiteira, cujo único cliente conhecido era a própria Bancoop. Segundo o engenheiro Ricardo Luiz do Carmo, que foi responsável por todas as construções da cooperativa, as notas emitidas pela Germany para a Bancoop eram superfaturadas em 20%.

A favor da empreiteira, no entanto, pode-se dizer que ela ao menos existia de fato. De acordo com a mesma testemunha, não era o caso da empresa de "consultoria contábil" Mizu, por exemplo, pertencente aos mesmos dirigentes da Bancoop e em cuja contabilidade o MP encontrou, até o momento, seis saídas de dinheiro referentes ao ano de 2002 com a rubrica "doação PT", no valor total de 43 200 reais. Até setembro do ano passado, a lei não autorizava cooperativas a fazer doações eleitorais.

Outro frequente agraciado com cheques da Bancoop tornou-se nacionalmente conhecido na esteira de um dos últimos escândalos que envolveram o partido.

Freud "Aloprado" Godoy – ex-segurança das campanhas do presidente Lula, homem "da cozinha" do PT e um dos pivôs do caso da compra do falso dossiê contra tucanos na campanha de 2006 – recebeu, por meio da empresa que dirigia até o ano passado, onze cheques totalizando 1,5 milhão de reais, datados entre 2005 e 2006.

Nesse período, a Caso Sistemas de Segurança, nome da sua empresa, funcionava no número 89 da Rua Alberto Frediani, em Santana do Parnaíba, segundo registro da Junta Comercial.

Vizinhos dizem que, além da placa com o nome da firma, nada indicava que houvesse qualquer atividade por lá. O único funcionário visível da Caso era um rapaz que vinha semanalmente recolher as correspondências num carro popular azul. Hoje, a Caso se transferiu para uma casa no município de Santo André, na região do ABC.

Depoimentos colhidos pelo MP ao longo dos últimos dois anos já atestavam que o dinheiro da Bancoop havia servido para abastecer a campanha petista de 2002 que levou Lula à Presidência da República .

VEJA ouviu uma das testemunhas, Andy Roberto, que trabalhou como segurança da Bancoop e de Luiz Malheiro entre 2001 e 2005.

Em depoimento ao MP, Roberto afirmou que Malheiro, o ex-presidente morto da Bancoop, entregava envelopes de dinheiro diretamente a Vaccari, então presidente do Sindicato dos Bancários e indicado como o responsável pelo recolhimento da caixinha de campanha de Lula.

Em entrevista a VEJA, Roberto não repetiu a afirmação categoricamente, mas disse estar convicto de que isso ocorria e relatou como, mesmo depois da eleição de Lula, entre 2003 e 2004, quantias semanais de dinheiro continuaram saindo de uma agência Bradesco do Viaduto do Chá, centro de São Paulo, supostamente para o Sindicato dos Bancários, então presidido por Vaccari.

"A gente ia no banco e buscava pacotes, duas pessoas escoltando uma terceira." Os pacotes, afirmou, eram entregues à secretária de Luiz Malheiro, que os entregava ao chefe. "Quando essas operações aconteciam, com certeza, em algum horário daquele dia, o Malheiro ia até o Sindicato dos Bancários. Ou, então, se encontrava com o Vaccari em algum lugar."

Os depoimentos colhidos pelo MP indicam que o esquema de desvio de dinheiro da Bancoop obedeceu a uma trajetória que já se tornou um clássico petista.

Começou para abastecer campanhas eleitorais do partido e acabou servindo para atender a interesses particulares de petistas. Entre os cheques em poder do MP, por exemplo, está um em que a empresa Mizu, de "consultoria contábil", doa 7 000 reais a um certo Centro Espírita Redenção, em 2003.

Muitas vezes, dirigentes da Bancoop nem se preocuparam em usar as empresas "prestadoras de serviços" que montaram com o objetivo de sugar a cooperativa para esconder sua ganância.

O MP encontrou quatro cheques da Bancoop, totalizando 35 000 reais, para uma ONG de Luiz Malheiro em São Vicente dedicada a deficientes auditivos – curiosamente, o mesmo endereço do centro espírita. Os cheques foram emitidos entre novembro de 2003 e março de 2005.

Tanta lambança, aliada a uma gestão ruinosa, fez com que a Bancoop mergulhasse num estado de pré-liquidação. Em 2004, com Lula já eleito, Luiz Malheiro foi pedir ao "chefe" Berzoini, então ministro do Trabalho, "ajuda" para reerguer a cooperativa.

Quem relatou o episódio ao MP foi seu irmão, Hélio Malheiro. Em 2008, dizendo-se sob ameaça de morte, Hélio Malheiro ingressou no Programa de Proteção à Testemunhas da secretaria estadual de justiça de São Paulo, no qual se encontra até hoje.

Em dezembro de 2004, depois que Luiz Malheiro já havia morrido, a "ajuda" chegou à Bancoop. Com apoio de Berzoini e corretagem da Planner (investigada pela CPI dos Correios sob a acusação de ter causado um prejuízo de 4 milhões de reais ao fundo de pensão da Serpro), a cooperativa associou-se a um Fundo de Investimentos em Direito Creditórios (FIDC), entidade que negocia recebíveis, e captou 43 milhões de reais no mercado – 85% dos papéis foram adquiridos por fundos de pensão de estatais controlados por petistas ligados ao grupo de Berzoini e Vaccari.

O investimento resultou na abertura de um inquérito pela Polícia Federal por suspeita de que os fundos de pensão teriam sido prejudicados para favorecer a Bancoop.

João Vaccari Neto é do tipo que se orgulha de ser chamado de "um petista histórico", o que, no jargão do partido, significa, entre outras coisas, que ganhou boa parte da vida dirigindo entidades de classe e do partido. Aos 19 anos, começou a trabalhar como escriturário do Banespa.

Ficou lá apenas dois anos. Depois disso, entrou no sindicato de sua categoria e nunca mais pegou no pesado. Participou de três diretorias da Central Única dos Trabalhadores (CUT), foi secretário de relações internacionais da entidade e presidiu o Dieese.

Atuou sempre como braço de apoio de Berzoini, a quem sucedeu na presidência do Sindicato dos Bancários de São Paulo em 1998. Apesar de não ter a projeção política do amigo, Vaccari conquistou a amizade de Lula, coisa que Berzoini jamais conseguiu obter.

Vaccari, como mostra agora a investigação do MP, tem mais em comum com seu antecessor, Delúbio Soares, do que a barba grisalha. E, como Freud Godoy, está mergulhado até os últimos e ralos fios de cabelo no escândalo dos aloprados.

Há duas semanas, um juiz de primeira instância contrariou decisão do Tribunal Superior Eleitoral e determinou a cassação do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, por suposto recebimento ilegal de doação de campanha.

A sentença, que colocou em risco a segurança jurídica, foi suspensa. Na semana passada, o TSE divulgou as regras que vão orientar as eleições deste ano.

São medidas moralizadoras, que incluem a obrigatoriedade da divulgação de quaisquer processos ou acusações criminais que pesem sobre o candidato e que dificultam manobras de doadores que tenham por finalidade esconder a origem do dinheiro.

Tudo isso mostra quanto o país está interessado em aprimorar seu sistema de financiamento eleitoral e proteger-se dos efeitos tão deletérios como conhecidos que sua distorção pode causar.

Ao indicar pessoalmente alguém com o prontuário de João Vaccari para tomar conta das finanças do PT e da campanha eleitoral de Dilma Rousseff, o presidente Lula sinaliza que, ao contrário do resto do Brasil, não está nem um pouco empenhado em colaborar na faxina.

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Uma pergunta que continua no ar

Quem deu o dinheiro para o dossiê dos aloprados? Entre os envolvidos, Vaccari era o único sentado numa montanha de reais

João Vaccari Neto e Freud Godoy, envolvidos agora no esquema Bancoop, já atuaram juntos em passado recente. Pelo menos é o que sugere o registro dos telefonemas trocados pela dupla às vésperas do estouro do escândalo dos "aloprados" – como ficaram conhecidos os petistas apontados pela Polícia Federal como integrantes da quadrilha que tentou comprar um dossiê supostamente comprometedor para tucanos durante a campanha presidencial de 2006.

No caso de Vaccari, então presidente da Bancoop, os vestígios de participação no caso guardam cheiro de tinta fresca. Foi para ele que Hamilton Lacerda – na ocasião coordenador de comunicação da campanha do senador Aloizio Mercadante – telefonou uma hora antes de fazer a entrega de parte do 1,7 milhão de reais que seria usado para comprar o dossiê.

O episódio teve início quando a família de Luiz Antônio Vedoin, chefe da máfia dos sanguessugas, ofereceu a petistas documentos que supostamente comprometeriam tucanos. Deles, faria parte uma entrevista em que os Vedoin acusariam o candidato do PSDB, José Serra, de envolvimento na máfia que distribuía dinheiro a políticos em troca de emendas ao Orçamento para compras de ambulância.

Ricardo Berzoini, então presidente do PT, foi acusado de ter dado a autorização para a compra do dossiê. Valdebran Padilha da Silva, filiado ao PT do Mato Grosso, e Gedimar Pereira Passos, advogado e ex-policial federal, seriam os encarregados de pagar os Vedoin com o dinheiro levado por Hamilton Lacerda.

Valdebran e Gedimar foram presos pela PF num hotel Íbis, em São Paulo, depois de terem recebido o dinheiro de Lacerda e antes de entregá-lo aos Vedoin.

Jorge Lorenzetti, churrasqueiro do presidente Lula, e Oswaldo Bargas, ex-secretário de Berzoini no Ministério do Trabalho, também estiveram envolvidos no episódio. Eles tentaram negociar com a revista Época uma entrevista em que os Vedoin fariam falsas acusações de corrupção contra Serra. A entrevista acabou sendo publicada pela revista Istoé.

Nas investigações que se seguiram à prisão de Valdebran e Gedimar, a PF identificou uma intensa troca de telefonemas entre os envolvidos, incluindo diversas ligações de Berzoini para a empresa Caso Sistemas de Segurança, hoje em nome da mulher de Freud Godoy.

Godoy seria o contato de Gedimar no alto escalão do PT. Quanto a Vaccari, bem, até onde se sabe, era o único dos aloprados que estava sentado sobre uma montanha de dinheiro, a Bancoop.

O fato de Hamilton Lacerda ter ligado para ele logo depois de ter cumprido a sua missão faz fervilhar a imaginação dos que até hoje se perguntam: de onde, afinal, veio o dinheiro dos aloprados?
O PT e o centenário de Tancredo


A ausência do PT nas celebrações, promovidas pelo Senado na quarta-feira, pelo centenário de Tancredo Neves, guarda coerência com a história do partido.

Embora hoje sustente o contrário, o PT foi beneficiário, mas não protagonista (em alguns momentos, nem coadjuvante) do processo de redemocratização.

Chegou a combater algumas de suas iniciativas, como a candidatura do próprio Tancredo Neves à Presidência pelo colégio eleitoral, em 1984. Além de não apoiá-lo – considerando que tanto fazia elegê-lo como a Paulo Maluf -, expulsou três de seus deputados (Beth Mendes, José Eudes e Airton Soares) que decidiram sufragá-lo.

Quando da promulgação da Constituição de 88, anunciou que não a assinaria, por achá-la conservadora. E só o fez, sob protesto, por instâncias de Ulysses Guimarães, que pedia uma chance para aquele momento que se inaugurava.

Mesmo na campanha das diretas – e isso é fato histórico -, não estava na sua gênese. Incorporou-se à campanha quando já estava nas ruas e atraía multidões.

Não obstante, todas essas iniciativas, de que manteve asséptica distância, o beneficiaram, deram-lhe visibilidade. Mas o partido sustentava que não lhe era conveniente manter proximidade de políticos tradicionais, como Franco Montoro, Leonel Brizola, Tancredo Neves ou Ulysses Guimarães. Considerava-os, sem distinção ideológica, farinhas do mesmo saco.

A política deles era promíscua, enquanto a do PT guiava-se por paradigmas de pureza. Lula desdenhava do trabalhismo varguista, de Brizola, considerando-o superado e de índole pelega. O seu era diferente, moderno, distanciado do Estado.

Recusou alianças e manteve-se, até chegar ao poder, numa redoma de impenetrável sacralidade. Recusou todas as frentes oposicionistas que se armaram para enfraquecer o último governo militar, do general João Figueiredo, o que suscitou suspeitas de que agia sob a inspiração do estrategista do regime, general Golbery.

O partido esteve na linha de frente do impeachment de Collor, mas recusou integrar o governo Itamar, expulsando Luiza Erundina, por tê-lo aceito.

Expulsaria mais tarde, em 1996, o deputado Eduardo Jorge, por ter votado a favor da CPMF, que o partido então combatia, mas que Lula, na Presidência, considerou imprescindível para governar o país. Só não expulsou os mensaleiros e aloprados.

A primeira aliança admitida foi com Leonel Brizola, que, embora com muito mais bagagem e história, se submeteu a ser vice na chapa de Lula, em 1998.

Na eleição anterior, o PT recusara convite de Fernando Henrique para figurar na sua chapa como vice, o que lhe abriria espaço para sucedê-lo e consolidar uma aliança progressista que dizia desejar. Preferiu, porém, combater o Plano Real, empurrar o PSDB para uma aliança conservadora com o PFL e continuar marchando sozinho, contra tudo e todos.

Ao finalmente se eleger, em 2002, incorporou-se ao “mesmo saco” das farinhas que execrara. Buscou alianças conservadoras com o PMDB, PL (hoje, PRB, do vice José Alencar), PTB et caterva.

Criticava o neoliberalismo dos tucanos, mas buscara o seu vice no Partido Liberal. Criticava a política monetarista do Banco Central, mas escolheu um banqueiro tucano, Henrique Meirelles, para presidi-lo.

Condenava a política assistencialista da Bolsa Educação e dos vale-gás e vale-alimentação, mas incorporou-as sob o rótulo Bolsa Família, que se transformaria no carro-chefe de seus dois governos.

Lula depois esclareceria, algo que antes não se percebera: que era (é) uma “metamorfose ambulante”. Mas, embora mostre sintonia com o que há de mais condenável nas tradições políticas nacionais, insiste em que refundou o Brasil, idéia que, sob o bordão “nunca antes neste país”, permeia a quase totalidade de seus discursos.

Ao revogar tudo o que se fez, de Cabral (o Pedro Alvarez, não o Sérgio) a FHC, não há mesmo por que celebrar o centenário de Tancredo, algo que, para os petistas, equivale a uma peça de ficção.

O Brasil petista começa com Lula e prossegue com Dilma. Apossa-se do que de bom produziu o Brasil anterior, sonegando-lhe a autoria, e atribui o que há de ruim, inclusive o produzido sob sua égide, aos antepassados. Vale-se do desconhecimento que o povo tem da história, recente e remota, para convencê-lo de sua encenação.

Pior: consegue.



Ruy Fabiano é jornalista

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Vejamos, por exemplo, a reação de setores do Supremo Tribunal Federal a respeito do debate sobre a modificação da interpretação da Lei de Anistia. Note-se bem, estamos falando de simples modificação de interpretação, e não de revisão do texto da lei. Trata-se de fazer valer a letra do artigo 1º, parágrafo II da Lei nº 6.683, em que se lê: “Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal” –propõe-se lembrar que sequestros e atentados pessoais de toda ordem cometidos por membros do regime militar nunca foram objeto de anistia (sequer na lei que os próprios militares se auto-concederam). Isto, sem dizer que uma lei que fala em crimes de terrorismo não pode se furtar a condenar crimes de terrorismo de Estado.
No entanto, um dos arautos da ala conservadora do STF, presidente atual do referido tribunal, chegou ao limite de evocar o artigo 5, inciso 44, da Constituição nacional a fim de justificar que, caso militares fossem julgados por tortura, assassinato, sequestro, atentado pessoal e ocultação de cadáveres, então antigos membros da luta armada deveriam ter o mesmo destino.
Em um destes lapsos reveladores e patéticos em que o enunciador não percebe o que realmente diz, o referido ministro fundava sua argumentação no seguinte texto da lei constitucional: "Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático”1.
Como se vê, o texto constitucional é de uma clareza cristalina. Sua ideia é: o Estado democrático, este no qual os princípios democráticos fundamentais estariam assegurados e implementados, compreende como crime imprescritível a tentativa de grupos armados (ou das próprias Forças Armadas, como sempre foi o caso no Brasil) em destruí-lo.
Que um ministro do STF compreenda que isto implica também a condenação constitucional de ações armadas contra o Estado militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1984 só pode significar que, para ele, não há diferença estrutural entre Estado democrático e Estado ditatorial, ou que simplesmente não havia ditadura no Brasil naquele período.
Ou seja, a lei é muito clara na sua função de defender o Estado Democrático, esse mesmo Estado cujos rudimentos foram destruídos pelo golpe militar de 1964. O que a lei visa tornar crime inafiançável e imprescritível são raciocínios como este, tão bem exposto em manchete do "Jornal do Brasil", de 6 de abril de 1964: "Pontes de Miranda diz que Forças Armadas violaram a Constituição para poder salvá-la!"2. O que ela procurava bloquear é a afirmação de que, em situações “excepcionais” seria possível romper a lei para garantir o funcionamento da lei. No entanto, o referido ministro, em um salto mortal rumo à sofística, entendeu que a lei constitucional procurava criminalizar aqueles que lutaram contra uma ditadura militar.
Às vezes, perdemos a capacidade de enxergar o caráter absurdo de exceção que sela o destino do nosso país. Como se não bastasse o fato do Brasil ser o único país da América Latina onde a Lei de Anistia vale para acobertar crimes contra a humanidade, como o terrorismo de Estado, a tortura e a ocultação de cadáveres, o único país onde as Forças Armadas não fizeram um mea culpa sobre o regime militar, onde os corpos de desaparecidos ainda não foram identificados porque o Exército teima em não dar tais informações, descobrimos que, caso a anistia contra tais carrascos seja suspensa, ministros do STF estariam dispostos a condenar também militantes da luta armada contra o regime militar por assassinato e tortura.
Duas perguntas devem ser postas aqui a respeito do argumento de que “os dois lados têm crimes contra a humanidade”. A primeira é: qual foi o caso de tortura feito por “terroristas”? Como simplesmente não há (e, mesmo se houvesse, vale a pena lembrar que a Lei de Anistia não prescreveu os ditos crimes de sangue, tanto foi assim que guerrilheiros que assaltaram bancos e participaram de atentados continuaram na prisão após 1979), criou-se um argumento de circunstância que consiste em dizer que os sequestros também eram crimes contra a humanidade.
Como não adianta lembrar que crimes contra a humanidade são crimes perpetrados pelo Estado contra seus cidadãos, e não ações feitas contra um Estado ilegal e seu aparato de defesa, alguns generais de reserva chegaram a dizer que o sequestro de 78 horas do embaixador norte-americano Charles Elbrick equivalia a tortura e assassinato. O detalhe é que Elbrick, ao ser solto, não procurou um hospital por algum tipo de sequela, mas se resumiu a dizer: “Ser embaixador nem sempre é um mar de rosas”. Não há notícias de que algum torturado tenha reagido desta forma, et pour cause.
A segunda pergunta que devemos colocar aqui é: se o raciocínio de reciprocidade, que fundamenta esta posição, é realmente algo a ser levado a sério pelo saber jurídico, então, por exemplo, por que o Tribunal de Nuremberg não condenou os resistentes franceses contra o governo de Vichy?
Pois, diga-se de passagem, é bom lembrar que tais resistentes cometeram assassinatos, torturas bárbaras e sabotagens não apenas contra um Estado nacional constituído comandado por um antigo heroi de guerra, marechal Pétain, mas também contra cidadãos franceses. Qual era o princípio jurídico adotado neste caso? Ele não consistia em dizer que a violência sistemática do Estado contra o cidadão em hipótese alguma equivale à violência do cidadão contra um Estado ilegal e seus aliados? Ou ainda, que devemos compreender a importância de desenvolver um conceito como “Estado ilegal”?

Anatomia do Estado ilegal
A fim de procurar colocar tal questão em seu solo adequado, devemos lembrar que a tradição política liberal (note-se bem, a tradição liberal, e não apenas revolucionária de esquerda) admite, ao menos desde John Locke, o direito que todo cidadão tem de se contrapor ao tirano e às estruturas de seu poder, de lutar de todas as formas contra aquele que usurpa o governo e impõe um Estado de terror, de censura, de suspensão das garantias de integridade social3.
Isso demonstra como, mesmo a partir do ponto de vista dos princípios do liberalismo político, o argumento que visa retirar a legitimidade da violência contra o aparato repressivo da ditadura militar brasileira é inaceitável. Ou seja, esta é uma batalha que não separa esquerda e liberais, mas que se fundamenta no reconhecimento de uma espécie de campo comum entre as duas posições. Insistamos neste aspecto: mesmo do ponto de vista da tradição liberal, a situação brasileira é uma completa aberração intolerável.
Devemos levar esse ponto a sério e perder o medo de dizer em alto e bom som: toda ação contra um governo ilegal é uma ação legal. Um Estado ilegal não pode julgar ações contra si por ser ele próprio algo mais próximo de uma associação criminosa. E devemos dizer ainda mais: do ponto de vista estritamente jurídico-normativo, o regime militar brasileiro era mais ilegal que o Estado nazista alemão.
Como bem lembra Giorgio Agamben, do ponto de vista técnico, Hitler não pode ser chamado de ditador. Ele era chanceler do Reich legalmente designado após uma eleição na qual seu partido venceu, respaldado pela Constituição liberal da Republica de Weimar (o que demonstra quão pouco uma Constituição liberal pode garantir4). Contrariamente aos generais brasileiros, ele não depôs ninguém e não suspendeu a Constituição. O que ele fez foi utilizar o artigo 48 da Constituição de Weimar, que previa a decretação do Estado de emergência e governar sob Estado de sítio durante 12 anos. A comparação serve apenas (e gostaria de insistir no sentido limitador deste “apenas”) para ilustrar o caráter claro do Estado ilegal brasileiro que imperou no Brasil entre 1964 e 1984.
Devemos insistir nessa questão. Pois podemos dizer que dois princípios maiores fundam a experiência de modernização política que caracteriza a tradição da qual fazemos parte.
O primeiro destes princípios afirma que um governo só é legítimo quando se funda sobre a vontade soberana de um povo livre para fazer valer a multiplicidade de interpretações a respeito da própria noção de “liberdade”. Um governo marcado por eliminação de partidos, atemorização sistemática de setores organizados da sociedade civil, censura, eleições de fachada marcadas por casuísmos infinitos, além de assassinato e exílio de adversários como política de Estado certamente não cabe neste caso (diga-se de passagem, isso vale tanto para ditaduras de direita quanto para revoluções populares em estado de degenerescência, regimes totalitários burocráticos ou despotismo oriental travestido de esquerda).
Nesse sentido, podemos estabelecer, como princípio, que a legalidade de todo e qualquer Estado está ligada à sua capacidade em criar estruturas institucionais que realizem a experiência social da liberdade. Ele deve, ainda, levar em conta que a própria determinação do sentido do conceito de “liberdade” é o objeto por excelência do embate político.
“Liberdade” é o nome do que expõe a natureza conflitual da sociedade. Não estamos de acordo a respeito do que significa “liberdade”, já que, para ela, convergem aspirações advindas de tradições políticas distintas. Podemos afirmar que liberdade é indissociável do “igualitarismo radical” e do “combate à exploração socioeconomica”. Ou podemos insistir que a liberdade é indissociável do “direito à propriedade”. No entanto, bloquear a possibilidade política de combate em torno de processos e valores e, com isto, ignorar a natureza conflitual do vínculo social, é sempre a primeira ação de um Estado ilegal5.
Por isso, podemos dizer que o segundo princípio que constitui a tradição de modernização política da qual fazemos parte afirma que o direito fundamental de todo cidadão é o direito à rebelião. Quando o Estado se transforma em Estado ilegal, a resistência por todos os meios é um direito. Nesse sentido, eliminar o direito à violência contra uma situação ilegal gerida pelo Estado significa retirar o fundamento substantivo da democracia6.
Que a democracia deva, através deste problema, confrontar-se com “o problema do significado jurídico de uma esfera de ação em si extrajurídica”, ou ainda com a “existência de uma esfera da ação humana que escapa totalmente ao direito"7, que ela deva se confrontar com uma esfera extrajurídica, mas nem por isto ilegal, nem por isto equivalente à exceção própria ao poder soberano, eis um dos elementos maiores a exigir nossa criatividade política.
Não creio ser necessário aqui fazer a gênese da consciência da indissociabilidade entre defesa do Estado livre e direito à violência contra um Estado ilegal. No que diz respeito ao Ocidente, é bem provável que sua consciência nasça da reforma protestante com a noção de que os valores maiores presentes na vida social podem ser objeto de problematização e crítica.
Ela está presente, por sua vez, no artigo 27 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, documento fundador da modernidade política. Artigo que afirma “que todo indivíduo que usurpe a soberania seja assassinado imediatamente pelos homens livres"8. Ainda hoje, ela aparece no artigo 20, parágrafo IV da Constituição alemã como “direito à resistência” ("Recht zum Widerstand"). Encontramos um direito similar enunciado em várias Constituições de Estados norte-americanos (New Hampshire, Kentucky, Tennesse, Carolina do Norte, entre outros).
No entanto, não devemos compreender a ideia fundamental desse direito à resistência simplesmente como o núcleo de defesa contra a dissolução dos conjuntos liberais de valores (direito à propriedade, afirmação do individualismo etc.). Na verdade, em seu interior encontramos a ideia fundamental de que o bloqueio da soberania popular (e temos todo o direito de discutir o que devemos compreender por “soberania popular”) deve ser respondido pela demonstração soberana da força.
Este é o solo adequado para compreendermos o que está em jogo na negação brasileira do reconhecimento da incomensurabilidade entre a violência do Estado ditatorial e a violência contra o Estado. Este é o solo adequado para apreendermos o sentido da tentativa de desaparecimento do nome daqueles que participaram da luta armada contra a ditadura. Pois podemos dizer, neste sentido, que os jovens que entraram na luta armada aplicaram o direito mais elementar: o direito de levantar armas contra um Estado ilegal, fundado através da usurpação pura e simples do poder graças a um golpe de Estado e ao uso sistemático da violência estatal. Desconhecer este direito é, este sim, o ato totalitário por excelência.