domingo, 31 de janeiro de 2010

22/03/2006
Eu escolho minha morte
Assim transcorreram os últimos dias de uma doente terminal que decidiu deixar de viver e pediu ajuda

Por Rodrigo Carrizo

Josiane Chevrier sofria de um câncer terminal que havia transformado sua vida em um pesadelo sem escapatória. Na Suíça, onde vivia, é legal ajudar uma pessoa que queira se suicidar. Existem inclusive associações que se encarregam disso. "El País" esteve com essa mulher e com os voluntários da Exit que puseram ao alcance de sua mão um veneno misturado com suco de laranja.

O encontro foi às 8 da manhã de um sábado gelado, há oito dias. Depois de um longo trajeto em uma estrada de montanha, os voluntários da associação e o cronista chegaram pontualmente à modesta casa de Josiane Chevrier, de 68 anos, onde os esperavam uma de suas três filhas, Anne, 42, e sua neta Julie, 20. Suas duas outras filhas haviam se despedido com um jantar na noite anterior. Não tiveram forças suficientes para assistir a um acontecimento difícil, controvertido, arrasador, que beira sinuosamente a estreita linha entre a legalidade e a ilegalidade, entre a ética e a realidade: o suicídio de sua própria mãe.

A paciente, tranqüila, parecia ansiosa para começar o procedimento de eutanásia, que aqui chamam de "auto-entrega".

É assim: dois acompanhantes, voluntários de uma associação cujo objetivo é ajudar os suicidas, perguntam ao paciente se está realmente decidido. Josiane estava. O resto é simples. Deram-lhe duas pílulas que têm como missão abrir a digestão e impedir os vômitos. Depois lhe dão 20 minutos para refletir e despedir-se de parentes e amigos.

Dissemos simples? Josiane empregou esses 20 minutos para falar com sua filha e sua neta em particular. Também para ler para si mesma uma oração que havia escrito dias antes. Depois pediu para sua filha não chorar. Em uma mesa havia um copo com uma dose letal de pentobarbital misturado com suco de laranja. Com um incrível senso de humor, Josiane comentou que pela cor a "poção mágica" parecia um copo do aperitivo Cynar.

O pentobarbital, utilizado como poderoso anestésico, é mortal a partir de 5 gramas. No copo que Josiane tomou havia mais de 10. A paciente o ingeriu. Cinco minutos depois começou a bocejar e recostou-se na cama. Eram dez e meia passadas.

Depois da morte, todos os assistentes se reuniram na sala da casa para conversar e tomar um chá. A tranqüilidade e naturalidade da cena pareciam irreais e quase difíceis de imaginar em outros contextos culturais.

Quando tudo terminou, Julie, a neta, comentou: "Durante semanas me perguntei quais seriam nossas últimas palavras. O incrível foi que não dissemos nada especial. Foi uma conversa normal, como as de todos os dias". Pouco depois Julie saiu para a tempestade de neve que se havia formado lá fora para fumar um cigarro e, muito provavelmente, liberar as lágrimas retidas na presença de sua avó.

O passo seguinte foi informar a polícia, que enviou um jovem e compreensivo oficial para comprovar que não havia ocorrido qualquer violência nem existia suspeita de assassinato e para assinar os documentos pertinentes. Instantes depois chegou a médica legista para certificar o óbito e chamar os serviços funerários, enquanto os presentes conversavam ao redor da mesa instalada a menos de 2 metros do cadáver. Todo o processo foi, nas palavras de um dos voluntários, Philippe Dekens, excepcionalmente simples e rápido: "O importante é a convicção e o desejo de partir da paciente".

Três dias antes, na quarta-feira, 8 de março, Josiane havia comentado com a mesma serenidade com que enfrentou seu último instante o que mais lhe causava medo no processo: "Que o tumor tenha avançado tanto que me impeça de ingerir a poção".

Essa mulher, pianista e professora de música, uma apaixonada por Bach, suportava havia dez anos um câncer de mama que nos últimos tempos lhe havia alcançado a garganta. As dores eram tais que precisava consumir morfina de forma maciça e cotidiana. "No início tentei não encarar o problema com demasiada dramaticidade", explicava. Não quis seguir nenhum tratamento convencional, nem submeter-se a quimioterapia. Optou por terapias alternativas e homeopatia, segundo sua militância ecologista. Não via inconveniente em contar sua vida, em explicar os passos que a haviam levado a tomar essa decisão que se materializaria três dias depois. Muitas vezes seu discurso era interrompido por causa do câncer avançado, que lhe provocava problemas de voz e cada vez mais dificuldade para ingerir alimentos ou bebidas. O mal havia entrado em uma fase chamada de "necrose nauseabunda", o que em termos claros quer dizer putrefação. Toda a casa nessa quarta-feira estava impregnada do odor adocicado, desagradável e inesquecível da doença.

Josiane, divorciada, tinha três filhas maiores de 40 anos. Passou a etapa final de sua vida em um povoado na Suíça ocidental, no fundo do vale de Joux, entre montanhas de extrema beleza. A paciente optou por viver nesse local de Le Brassus para poder praticar seu passatempo favorito: a caminhada em plena natureza. "Durante oito anos vivi muito bem, sem muitas dores nem incômodos", afirmou nessa tarde de quarta-feira. Até que a situação se tornou intolerável e suas condições de vida degeneraram a ponto de tornar sua existência insuportável.

A partir daqui, a história dessa mulher teria sido semelhante à de milhões de doentes graves ou em fase terminal, exceto por um detalhe: Josiane era suíça. E nesse país a assistência ao suicídio não é proibida, mesmo que aqueles que a pratiquem não pertençam à profissão médica. Um curioso vazio jurídico, que partiu da absolvição de um militar que nos anos 20 emprestou sua pistola a um companheiro apaixonado e desprezado para que se suicidasse com um tiro, desembocou no artigo 115 do Código Penal suíço, que permite a "morte com dignidade".

Josiane decidiu fazer uso desse direito, e em 17 de outubro passado chamou a Exit. Não só isso. Josiane também concordou que um jornalista acompanhasse a ela e a seus parentes mais íntimos em seus últimos dias. "Mas não sei o que posso ter de interessante para contar", dizia. Mas nada de fotografias. Josiane, uma mulher de olhar claro e cabelo curto e grisalho, conservou até o final uma vaidade e um pudor que o impediu. "Ninguém quer ver o rosto de um doente terminal", explicou. Sua residência, a poucos passos da praça central do povoado, é modesta e tipicamente suíça. Com dois elementos de destaque: um velho cravo e centenas de livros.

"Conheci a Exit graças a alguns amigos que eram membros e que afirmavam que pertencer a essa associação lhes dava uma grande segurança, pois sabiam que eram os únicos donos de seu destino", comentou Josiane. Seu médico de cabeceira, embora a tenha respeitado, reprovou sua decisão e negou-se a estar presente no momento da despedida.

A Exit demorou quatro meses para aprovar o pedido de Josiane.

Até 1º de fevereiro não aceitou que seus membros acompanhassem e ajudassem até o final a professora de piano e lhe proporcionassem a substância letal necessária para efetivar sua "auto-entrega". Antes a associação precisou verificar que a mulher cumpria os requisitos que ela exige de qualquer pessoa que peça sua ajuda: capacidade de discernimento, que o pedido seja sério e repetido, que sofra de uma doença incurável e mortal e que além disso esta provoque grande sofrimento físico e psíquico.

Uma restrição adicional é o fato de que é preciso ser suíço. O motivo é que fora da Suíça ajudar um suicida é proibido, o que acarreta grande dificuldade para encontrar voluntários ou, no caso de encontrá-los, "muito desgaste emocional nos voluntários", segundo Jerôme Sobel, 53, prestigioso médico e fundador e presidente da Exit.

Essa associação, de que na Espanha existe um ramo chamado Direito a Morrer Dignamente, funciona na Suíça desde 1982 e conta com mais de 67 mil associados que pagam uma cota anual de 20 euros. Em 2005 ajudou 350 doentes a morrer. Sobel defende que "o fim da vida faça parte do plano oficial de estudos da escola de medicina" e afirma que seu maior desejo é que "a Exit desapareça e sua função seja desempenhada pelo médico de cabeceira".

"Minhas filhas concordaram com minha decisão, pois não quiseram me ver passar pelo inferno dos hospitais", comentou Josiane em sua casa, com a mesma calma de sempre, antes de acrescentar: "Não é a morte que me dá medo, mas o fato de não poder viver normalmente". A paciente mostrou-se convencida de que teve "uma vida plena", mas mesmo assim considerou: "É um pouco injusto partir agora e desta maneira. Não é o que eu imaginava como final da vida".

A paciente se confessou católica de formação, mas não praticante, embora tenha se declarado "convencida da existência de uma presença superior e benévola". Na opinião dela, não existe "qualquer contradição entre as crenças e a decisão adotada".

Na primeira semana de março, alguns dias antes de morrer, Josiane conheceu os dois voluntários que iriam acompanhá-la em todo o processo e que se encarregariam de lhe proporcionar, em seu devido tempo, um copo com o suco de laranja e pentobarbital. Eles se chamam Philippe Dekens e Dominique Roethlisberger.

Dekens, 55, é enfermeiro, de origem belga e vive na Suíça há dez anos. Uma experiência pessoal "próxima da morte" há dois anos o sensibilizou para o tema e ele decidiu ingressar na Exit. Realizou cinco "acompanhamentos" em 2005 e dois neste ano. Agora prepara-se para ajudar um paciente de 41 anos, vítima de câncer de próstata. Considera-se "um mero executor do desejo do paciente". Roethlisberger, por sua vez, é uma enfermeira especializada em psiquiatria que trabalha há seis anos com a associação. Segundo sua experiência, "em geral os pacientes estão tão convencidos de sua decisão que perderam o medo". Eles trabalham em equipe, o que é extremamente incomum na estrutura da Exit.

Marianne Tendon ingressou na associação em 1986 e hoje é a decana dos acompanhantes. Afirma que "uma das características mais duras do trabalho é que se estabelecem vínculos muito fortes com pessoas que serão perdidas em pouco tempo". Ex-educadora e enfermeira, Tendon afirma que nunca acompanha alguém com dúvidas, "seja por motivos éticos ou religiosos". Também opina que "as pessoas têm o direito de ser contra o suicídio assistido, mas só em sua própria vida", e que "ninguém tem direito a legislar sobre o sofrimento alheio".

O encontro final entre os dois acompanhantes e Josiane foi marcado para sábado, 11 de março. "Não tenho nenhum medo pelas questões práticas da vida dos que ficam, nem pelo que aconteça depois de minha partida, pois tive tempo de cuidar de tudo", contou Josiane três dias antes de morrer.

Sua "auto-entrega" foi combinada com sua família. "Tomei a decisão final no momento em que senti que tanto eu como minhas filhas estávamos maduras para assimilar isso", acrescenta. Nunca pensou em aceitar os cuidados paliativos que lhe ofereceram. "Todos esses tratamentos e terapias são tão caros e complicados que terminam sendo uma sangria inútil para a família e a sociedade", opinava com um pragmatismo tipicamente suíço.

A Exit não é a única associação suíça que assiste o suicídio. A segunda e mais conhecida internacionalmente é a Dignitas. Nascida em 1997, produto de uma cisão da Exit, situada em Zurique e fundada pelo advogado Ludwig Minelli, a Dignitas aceita pacientes estrangeiros. Essa prática controversa deu origem ao termo "turismo da morte", diante da grande quantidade de europeus que acorrem à Suíça em busca da ajuda que não podem obter em seus países. O Reino Unido convocou um debate parlamentar sobre o assunto este mês, diante do crescente número de cidadãos britânicos que recorrem aos serviços da Dignitas.

Minelli, que para justificar sua tese afirma que, por exemplo, na Alemanha "há um suicídio a cada 47 minutos", considera que "a sociedade aplica ao suicídio assistido a mesma hipocrisia que em seu tempo aplicou ao aborto".

Sem sentimentalismos

No sábado frio do encontro com Josiane em sua casa em Le Brassus, durante a viagem de carro, os dois voluntários da Exit se dedicaram a comentar outros casos, passados e atuais, com uma sobriedade absolutamente despida de sentimentalismo.

Pela conversa desfilaram todos os males que atacam os seres humanos: câncer, esclerose múltipla, Parkinson e diversas doenças degenerativas. Dekens refletia em voz alta: "No dia do acompanhamento não nos damos conta do que aconteceu. O golpe costuma chegar dois ou três dias depois, quando tudo já terminou". E acrescentou: "Muitas vezes se estabelece uma forte cumplicidade entre eu e o paciente. Tento, na medida do possível, não me apegar demais a eles, embora nem sempre seja possível. De outra maneira, esse voluntariado se transformaria em uma carga insuportável para qualquer um".

"As famílias em geral estão tranqüilas e aceitam a decisão", acrescentou. "Mas às vezes, raramente, encontramos uma hostilidade muito clara." O enfermeiro belga lembrou um caso em que o filho de um paciente começou a falar com seu pai, que acabara de tomar a poção, e a lhe pedir que não se fosse. Ele demorou mais de seis horas para morrer. O motivo, segundo o enfermeiro, estaria no inconsciente do doente: "Continuava trabalhando, mesmo sob o efeito do pentobarbital, impedindo que o corpo se entregasse para não magoar o filho que lhe pedia que não partisse".

Assim chegaram ao povoado de Josiane. Eram 8 da manhã.

Horas depois, com a chegada do médico legista e da polícia, os dois voluntários da Exit dão por terminada sua tarefa. E deixam a casa da mulher vítima de câncer para cumprir um ritual inevitável depois de cada "acompanhamento". Eles chamam de "fazer um banquete". Um restaurante de montanha recebeu os voluntários, que, com carnes regadas com uma generosa dose de vinhos franceses, comentaram os incidentes da partida de Josiane. Os comensais das mesas vizinhas mostravam-se visivelmente perturbados pelo tema da conversa. Mas eles falavam sem deixar que a sombra da tragédia ocupasse a mesa.

Nenhum comentário: