domingo, 31 de janeiro de 2010

Viver é muito perigoso
MEMBRO DE ASSOCIAÇÃO PRÓ-EUTANÁSIA, O MÉDICO FRANCÊS BERNARD SENET CONTA COMO AJUDOU PACIENTES A MORREREM

AGATHE LOGEART

O médico Bernard Senet, 59 anos, é clínico-geral em Velleron, uma aldeia de 3.000 habitantes perto de Avignon [sul da França]. Defensor da eutanásia voluntária, diz que estava disposto a dar à doente Chantal Sébire os meios de pôr fim à vida. Nesta entrevista ele conta por quê.

PERGUNTA - O sr. é o médico que propôs ajudar Chantal Sébire a morrer, dando-lhe o produto necessário e assistindo-a até a morte. Ela não era sua paciente e o sr. não a conhecia. Por que essa atitude?
BERNARD SENET - Há um ano, eu havia assinado um manifesto público de 2.000 médicos e cuidadores que reivindicavam o fato de ter ajudado pacientes a morrer. Os principais candidatos à eleição presidencial haviam se pronunciado a favor de uma evolução da lei. Mas nada aconteceu.
O direito a morrer com dignidade é para mim, clínico-geral há mais de 30 anos, um compromisso essencial, militante. Eu já ajudei pacientes a morrer e ainda o faço.
Depois que vários médicos se recusaram a ajudá-la, depois de compreender que nem sequer lhe diriam como conseguir os produtos necessários, Chantal Sébire dirigiu-se à Associação pelo Direito de Morrer com Dignidade: compreendeu que havia um combate a travar e decidiu pôr fim a sua vida a serviço desse combate, da causa da eutanásia voluntária.
Como o médico que acompanhara a paciente durante toda a sua doença se recusava a associar-se a esse procedimento, aceitei que meu nome aparecesse no pedido feito ao tribunal de Dijon para obter o direito a uma eutanásia ativa.
Eu não a teria praticado sem a autorização da Justiça. Havíamos pensado que ela aceitaria nosso pedido, mas isso não aconteceu. E Sébire morreu sem nossa ajuda.

PERGUNTA - Mas o sr. não conhecia essa pessoa?
SENET - Não. Mas conversamos duas vezes por telefone. Na primeira vez, no dia seguinte à homologação do pedido, falamos longamente. Ela sabia por onde estava andando.
Explicou-me sua doença, sabia que corria o risco de morrer em pouco tempo, fosse por hemorragia ou por hipertensão intracraniana. Ela já tinha perdido o olfato, o paladar, a visão.
Sofria terrivelmente. Era intolerante à morfina. Os outros medicamentos que lhe prescreveram para acalmar as dores não eram suficientemente eficazes e a faziam dormir, o que ela não suportava.
Ela me disse que estava contente por eu aceitar ajudá-la. Depois me falou sobre sua filha de 12 anos, que, ao que parece, era uma de suas maiores preocupações. Ela não queria de modo nenhum impor à menina a visão de uma morte violenta, como é o caso de uma hemorragia. Dizia querer que a ajudássemos a morrer em condições de tranqüilidade, como as definimos na ADMD.
Assim que entramos em acordo, foi preciso que eu conseguisse o produto, Pentothal [barbitúrico], em quantidade significativa, sim, mas isso não foi muito complicado. E depois eu iria encontrá-la.
Falei com ela rapidamente uma segunda vez, alguns dias depois. Estava muito mal. Sangrava muito. Sentia que a doença se agravava rapidamente.
Estava muito cansada, muito deprimida e cada vez mais preocupada com sua filha, com a dificuldade em que se encontrava para lhe explicar que havia decidido partir. O julgamento seria no dia seguinte.
Mas a Justiça recusou seu pedido. E Chantal Sébire partiu de outra maneira.

PERGUNTA - Se é um ato que o sr. costuma praticar na clandestinidade, por que dessa vez procurou a Justiça e respeitou sua decisão?
SENET - Durante minha vida de médico, pratiquei a eutanásia ativa uma ou duas vezes por ano. Mas sempre com pacientes que acompanhei ao longo de toda a sua história. Lembro-me muito bem da primeira vez.
Era uma menina de 12 anos, vítima de uma forma muito rara de câncer. Por dois anos, com uma coragem incrível, cercada de seus pais, lutou contra a doença. Aos 14 anos me disse que não agüentava mais e que desejava partir. Eu a ajudei.
O caso de Chantal Sébire é muito diferente. Para ela, mas também para mim, era um ato de militância. A ADMD e eu decidimos não infringir a decisão do tribunal. Por temermos uma epidemia de pedidos, mas também porque o objetivo da associação não é ajudar as pessoas fora da lei, e sim fazer com que a lei seja modificada.

PERGUNTA - Mas Chantal Sébire não morreu da doença, como parecem confirmar os primeiros elementos da autópsia.
SENET - Se ela se suicidou, tinha esse direito e todos os motivos para fazê-lo. Criminalizar os que ajudaram Chantal Sébire a se suicidar, seja quem for, não é evidentemente o melhor caminho. Mas é evidentemente uma opção política, e é preocupante.
Com a autópsia que foi decidida, impõe-se um sofrimento suplementar e inútil à família, que já sofreu tanto...
Se o inquérito permitir descobrir a identidade dos que ajudaram Chantal Sébire a morrer, serão estigmatizadas pessoas que tentam ajudar outras que pedem socorro no fim da vida. No fundo, isso mostra apenas que, apesar da importância do debate que hoje sacode a França, estamos vivendo um verdadeiro retrocesso.
Ao contrário do aborto, quando as mulheres se levantaram para dizer que tinham abortado e conseguiram fazer mudar a lei, para a interrupção voluntária da vida quem irá se levantar? Os moribundos? Se não quiseram escutar Chantal Sébire, quem vai nos escutar?
MORTE ADENTRO

Débora Diniz, que leciona bioética na UnB, diz que apressar morte é um direito individual do paciente

Para professora, eutanásia é solidariedade
DA SUCURSAL DO RIO

A eutanásia, além de ser um direito individual do paciente, pode ser encarado como um gesto de solidariedade do médico.
Essa é a opinião da antropóloga Débora Diniz, 34, professora de bioética da UnB (Universidade de Brasília).
Na avaliação dela, durante todo o ciclo da vida estamos "medicalizando" a morte, mas há momentos em que há um exagero nessa "medicalização".
A seguir, trechos de sua entrevista à Folha. (ANTÔNIO GOIS)

Folha - A senhora defende o direito individual à morte, como em casos de eutanásia, e ao aborto, como no caso de fetos sem cérebro. Como tem sido a reação a propostas tão polêmicas?
Débora Diniz - Sou a favor da expansão das liberdades individuais. No campo do aborto, sob a perspectiva dos direitos individuais, alguns defendem a existência de um choque de interesses entre a autonomia reprodutiva das mulheres e um direito inalienável do feto à vida.
No caso da eutanásia, esse suposto conflito de interesses inexiste, uma vez que a decisão sobre a morte é um ato estritamente individual.


Folha - Mas a senhora não acha que existiria um conflito, pelo menos ético, a respeito da responsabilidade do médico? Muitos profissionais podem argumentar que juraram lutar sempre pela vida.
Diniz - Esse conflito ético realmente pode existir, mas a eutanásia, em casos em que a pessoa está sofrendo e não há chance de reversão do quadro, pode ser encarada também como um gesto de solidariedade do médico com seu paciente.
É óbvio que ninguém está defendendo que um médico ou enfermeiro, por sua própria vontade, desligue os aparelhos de um paciente sem consultá-lo ou discutir o assunto com a família. Isso é homicídio.


Folha - Na sua opinião, por que para as pessoas é tão difícil falar da morte?
Diniz - Porque esse é um tema tabu. O que acontece é que o termo eutanásia é carregado de forte conotação negativa, como algo que lembra práticas nazistas. Mas em qualquer UTI do Brasil esse é um tema discutido em outros termos. Fala-se em deixar a vida seguir seu curso ou a morte correr naturalmente.
Quando pensamos a eutanásia dentro de um contexto de liberdade, essa é uma decisão sobre seu próprio corpo. Não estamos falando jamais de práticas de extermínio indesejado.
A discussão deve se pautar sobre pessoas capazes de ponderar sobre sua própria existência, mas há uma tendência a se pensar sempre questões como as do aborto e da eutanásia como uma relação em que um é o assassino e o outro é a vítima indefesa.


Folha - Jovens com depressão podem querer se suicidar, mas muitos se arrependem de ter cogitado isso depois de superada essa fase. Como lidar com a eutanásia nesses casos?
Diniz - Um jovem que está em tratamento de depressão e uma pessoa vivendo em estágio irreversivelmente vegetativo são casos diferentes.
Do ponto de vista moral, é mais fácil começar esse debate a partir de casos em que a morte é inevitável. A religião católica, por exemplo, consegue enfrentar melhor o debate da eutanásia passiva do que o do aborto, já que, nesse primeiro caso, há a idéia de que estamos lutando contra um curso já predeterminado por Deus.
Mas isso não pode ser aplicado indiscriminadamente. Se formos levar ao pé da letra esse argumento de que devemos deixar a vida seguir seu curso, morreríamos todos na primeira pneumonia. Estamos, o tempo todo, medicalizando a morte, mas em determinados momentos há um exagero dessa medicalização.


Folha - E como lidar com o arrependimento depois?
Diniz - O arrependimento só é possível depois de ter vivido uma situação. É preciso experimentar para conhecer nossas reações. Pode haver o arrependimento tanto por ter obrigado alguém a ficar vivo quanto por ter deixado morrer. As pessoas se arrependem quando cometem atos que consideram imorais, mas não há uma regra sobre o que seja moral ou imoral em todos os casos. Por isso, essa é uma decisão que cabe a cada pessoa, e não ao Estado.
Um país triste
LUÍS MIR

Somos um país triste. Aqui tudo é oficial. A história, a realidade, a ética, a crítica, o pensamento, a literatura, a reflexão, a vida, a morte. Nada existe fora dos trâmites, cânones, interesses, conchavos oficiais. Ao não termos como centralidade a política em todas as suas expressões e manifestações, temos o institucionalismo mais sufocante e repressor. Nada é feito fora do Estado, tudo que lhe interessa ele acoberta, acumplicia, apóia, estimula ou condena; retira seu apoio e sufoca tudo o que possa surgir fora dele ao mais completo ostracismo ou morte planejada.


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Somos um país onde os fatos, as suas versões, todas as interpretações são oficiais. Nada pode ser feito fora do oficialismo
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Somos um país onde os fatos, as suas versões, todas as interpretações e até as suposições são oficiais. Nada pode ser feito fora do oficialismo. A fronteira entre público e privado é somente um axioma para ser citado, e não seguido. Essa perene falsificação da história real em história oficial tem nos feito transitar entre o ridículo e o patético sem nenhum sobressalto ou susto. Todos os documentos são triados, queimados, adaptados, manipulados pelo país oficial. Não se tem acesso a nada que não seja oficial, consentido e manipulado pelos governantes.
Triste ofício o de historiador. Penoso o de jornalista. Quase impossível o de crítico. Maquiavélico o de pesquisador. Angustiante o de médico de atendimento de emergência, quando o pronto-socorro se transforma na ante-sala do inferno, dentro da mais absoluta normalidade e legalidade.
A hierarquia oficial também só é mantida, respeitada ou seguida pela própria hierarquia oficial. Ela segue regras próprias, leis favoráveis, ética e moral cômodas. Não vale o que está escrito, não protege o que a história registra, não ampara o que é real. Se o ministro da Defesa não demite o chefe da base aérea de Salvador por queimar patrimônio público é porque o ministro da Defesa e o chefe da base aérea só farão o que interessa ao país oficial. O país real é uma abstração e não merece ser levado em conta. Da mesma forma como deveria ter sido impedida a implosão do Carandiru, como história do sistema prisional brasileiro. Mantidas as celas originais, os instrumentos de tortura, as armas rudimentares dos detentos, os túneis. Não, explodiram a história real.
Da mesma forma como quiseram transformar o prédio que abrigava o Departamento de Ordem Política e Social em São Paulo em um centro cultural. Quase como uma instalação povoada por artistas e anjos. Deveriam ter sido mantidas e preservadas as celas em sua forma original, com todas as salas e os instrumentos de tortura intactos. O país oficial não queima somente arquivos públicos, implode o país real sempre que este lhe molesta a consciência ou lhe cobra algo imputável. Sempre que o país real tenta sair à superfície, ele é esmagado com a violência necessária e sanitária adequada.
Somos um país linear, monocromático, monotemático, monodisciplinar, monocultural. Dispensamos o pensamento único, temos a verdade única. Não temos a experiência da política em todas as suas possibilidades. Todos os protagonistas de nossa história -à direita ou à esquerda, no centro ou nos extremos- sempre foram tão autoritários e arrogantes quanto os seus piores adversários. Na verdade, nunca foram adversários. Sempre foram em busca do mesmo objetivo, do mesmo poder, do mesmo país oficial. Nunca estiveram no país real e nunca o conheceram realmente. Sempre quiseram destruir o país real e nunca abandonaram o país oficial.
No país oficial, o Estado só mostra, revela, desvela e concede acesso a documentos, personagens, histórias, fatos e crimes que lhe interessam e fazem parte da história oficial. Não há nada a ser revelado que não se saiba ou não se intua o suficiente nos arquivos oficiais da ditadura de civis e militares que atrasou este país por duas ou três gerações.
A direita civil e militar vai negociar com a esquerda oficial e institucional o que será mostrado e como, onde e por quem. O que não interessar à direita civil e militar e à esquerda oficial e institucional será queimado. Assim é há cinco séculos e não há nenhum fato, interesse, motivo ou razão para que seja diferente. Todos os arquivos serão mantidos trancafiados ou queimados, à brasileira, como os da Guerra do Paraguai e os da escravatura. Não será diferente com os da ditadura civil-militar de 25 anos.
Neste momento, a única coisa que podem fazer os pesquisadores e os médicos envolvidos no atendimento às vítimas da guerra civil -no país oficial é só uma crise provocada pelo tráfico de drogas e pela população bárbara e selvagem das favelas- é tentar salvar o máximo possível de inocentes. Perderam a maior das nossas inocências, a de que somos todos humanos.
O país oficial nos detesta. Rejeita-nos, quase nos agride e ofende à luz do dia. Estamos gastando recursos da arca do tesouro oficial com pobres, miseráveis, velhos, jovens e crianças que tiveram o que mereceram -a interrupção da vida como prêmio por habitarem o país real, e não o país oficial. E como se não bastasse isso, ainda querem penetrar nas entranhas do país oficial e garimpar os custos e os números reais da guerra civil. O país oficial é falso. E triste, mórbido, cruel.
HOMENS-TEATRO, SE QUISEREM
Ator deve praticar uma "ginástica intelectual" para recuperar os sentidos histórico e social de uma peça

por Jean-Paul Sartre

Talvez se surpreendam que tenhamos pensado em fundar uma escola, quando já existem tantas. Mas nos pareceu que o ensino dramático, tal como é concebido hoje, não responde mais inteiramente a seu objetivo. O valor individual dos professores -eles próprios excelentes atores- não está em causa. O que parece ter-se perdido de vista é a natureza própria do ator e suas funções.
Uma escola dramática -todos concordarão- deve ser uma escola de interpretação. Naturalmente, e antes de tudo, são cursos de interpretação que estamos preocupados em criar. Mas não os consideramos como o único ensinamento a dar aos atores. Eles nos parecem ser antes o coroamento de toda uma vida de disciplina. É que a interpretação teatral é de uma espécie muito particular: o ator é ao mesmo tempo o intérprete e o instrumento. Um violinista deve servir-se de um instrumento cujos recursos estão exatamente determinados. Ele conhece esses recursos, e o autor cujas obras executa os conhecia também. O instrumento do ator é ele mesmo: seu próprio corpo, sua fisionomia, sua voz, seus movimentos.
Ora, ninguém até aqui se preocupou em estabelecer um registro dos recursos dramáticos do corpo humano. Eles permanecem indefinidos, e com freqüência o jovem ator os ignora em sua maior parte. Mais ainda: os próprios autores permanecem aquém do que poderiam exigir de seus intérpretes, como um compositor que escrevesse uma melodia para duas cordas de violino. Alguns mesmo -e dos mais célebres- crêem que o teatro é uma arte puramente vocal e não vêem que o ator -o ator como uma totalidade psicofisiológica- é a substância mesma da peça, a matéria de que ela é feita; eles não compreendem que uma arte dramática que exigisse mais dos atores seria profundamente renovada por esse fato mesmo.
Nossa escola gostaria de tentar restituir a essa matéria humana toda a sua plasticidade, isto é, colocar o ator de posse de todos os seus recursos espirituais e corporais.
Essa tarefa nos parece particularmente urgente hoje. Com efeito, basta um exame superficial para ver que uma certa vivacidade clownesca e quase louca se perdeu. O ator -o das pantomimas, da "commedia dell'arte"- era no passado um saltimbanco, um malabarista. Talvez a interpretação propriamente dita sofresse com isso, mas o desempenho dos intérpretes ganhava uma graça, uma leveza cujo segredo não mais conhecemos. Vejam os bufões de Shakespeare: deveriam ser alados e os calçamos com solas de chumbo.
Um curso de arte dramática deveria restituir ao corpo sua flexibilidade por um treinamento apropriado. Uma ginástica cotidiana, a prática de certos esportes, a mímica, os diversos meios que visam a dar ao homem o domínio de seu corpo, devem concorrer a esse objetivo. É inconcebível, por exemplo, que um ator aprendiz creia desde o início "saber respirar". Ele respira, é verdade, como Monsieur Jourdain escrevia prosa. Mas Monsieur Jourdain não podia se tornar um grande prosador, pois ignorava a arte da prosa.
Assim também o jovem aprendiz ignora tudo da "arte respiratória". Não sabe que esse é o alfabeto do ator, que uma boa respiração é como o pilar que sustentará sua voz, seus gestos e mesmo sua postura. É o que tentaremos ensinar-lhe.
Além disso é preciso reconhecer que se torna cada vez mais difícil ser ator. De fato, é costume dizer que se deve abandonar a pretensão de ser um cientista universal, porque a quantidade absoluta dos conhecimentos científicos a adquirir aumenta a cada dia. Mas já se refletiu que no teatro deparamos com dificuldades quase tão grandes porque a quantidade absoluta dos papéis a aprender aumentou nas mesmas proporções?
Antigamente, algumas farsas, uma ou duas grandes peças constituíam uma bagagem suficiente. Hoje, porém, o ator se vê diante de uma produção dramática distribuída por vários séculos e ele deve adaptar-se, de um dia para o outro, a exigências profundamente diferentes. Desempenhará ele um ciumento de Molière no mesmo estilo que "Os Espectros", de Ibsen? "O Anúncio Feito a Maria", de Claudel, como "A Galeria do Palácio", de Corneille?
Na maior parte do tempo, o ator elude a questão: permanece ele mesmo na imensa diversidade dos papéis que desempenha, nunca representa senão ele. É que lhe falta cultura. Certamente ele pôde ler todas as peças do repertório. Mas acaso suspeita de que as peças emanavam de um certo meio, que respondiam a certas questões colocadas pela época, que correspondiam a uma certa concepção do teatro, que foram representadas, escutadas e compreendidas numa atmosfera social bem definida?

Sentido histórico da obra
É somente quando o ator tiver compreendido o sentido histórico de uma obra teatral, é somente então que ele poderá realmente representar "um Marivaux" ou "um Shakespeare". Convém, portanto, flexibilizar seu espírito -assim como queremos tentar flexibilizar seu corpo- por uma ginástica intelectual.
Essa ginástica é a cultura -uma cultura ao mesmo tempo geral e estritamente apropriada às necessidades do teatro-, não há atores sem cultura; somente a cultura pode lhes permitir sair de si mesmos, somente ela lhes dará a compreensão do texto e colocará à sua disposição os registros dramáticos os mais variados. Assim nossa escola reservará a maior parte do tempo ao ensino cultural. Parece, enfim, que o teatro deve, nos anos vindouros, estreitar seus vínculos com a comunidade. No último século o público vinha simplesmente divertir-se no teatro, e as representações reuniam espectadores de origens muito diversas, que não tinham nem as mesmas paixões nem os mesmos interesses.
Com isso, os atores eram levados a dividir sua vida em duas partes bem distintas: no palco, algumas horas por dia, exerciam uma profissão; na cidade, o resto do tempo, eram homens como os outros; de sua arte, conservavam apenas, na maioria das vezes, uma deformação profissional bastante irritante. Se o teatro quiser retomar a função social que teve nas grandes épocas da arte dramática, ele terá que exigir dos espectadores, do autor e dos atores mais compreensão recíproca e mais disciplina. De nossa parte, gostaríamos de contribuir a essa metamorfose formando, mais do que atores, homens, homens para quem o teatro seria ao mesmo tempo uma concepção do mundo e o ponto de vista pessoal que eles teriam sobre tudo: homens-teatro, se quiserem.
Talvez considerem nossa ambição muito pretensiosa. Não é preciso tanto esforço, dirão, para formar um ator. O essencial é que ele tenha um temperamento, uma "natureza". O resto virá espontaneamente, a arte não se preocupa com pedagogia. Mas, em primeiro lugar, se é verdade que o ator de gênio não tem necessidade de ninguém, é preciso convir que o teatro não é feito apenas pelos atores de gênio. Há também os outros, todos os outros, os honestos artesãos do teatro, inteligentes e conscienciosos. Uma escola como a nossa se preocupará primeiramente com esses: trata-se de elevar seu nível, de revelar-lhes todas as suas possibilidades, de levá-los ao melhor de si mesmos. Conseguir elevar, ainda que só um pouco, o nível médio dos atores seria um tempo perdido?
Quanto aos outros, aos artistas de exceção, certamente não pretendemos ensinar-lhes seu gênio. Mas, se as vicissitudes de nascimento e as dificuldades materiais os privaram, na origem, de cultura e de alguns meios físicos, eles buscarão por muito tempo, talvez a vida inteira, adquirir por si próprios essa cultura e esses meios. Não acreditaremos ter agido mal se nossa escola lhes tornou essa aquisição mais fácil.
Fé e suspeita em Freud
SERGIO PAULO ROUANET
COLUNISTA DA FOLHA

Este ano foi pródigo em efemérides, desde o centenário do nascimento de Sartre ao cinqüentenário da morte de Einstein, mas mesmo assim há lugar para comemorar os 75 anos da publicação de um dos livros mais influentes do nosso tempo: "O Mal-Estar na Civilização", de Sigmund Freud.
Freud começa seu livro retomando a questão da religião, que discutira pouco antes, em "Futuro de uma Ilusão". Para ele, a religião não se devia a nenhum sentimento "oceânico", como pensava [o escritor] Romain Rolland, mas à necessidade humana de fabricar ilusões, entre as quais a ilusão religiosa, que nos ajuda em nosso desamparo, criando a figura de um pai transcendente, e nos oferece a promessa da bem-aventurança eterna, compensando-nos por nossa infelicidade terrena.
Entre as fontes dessa infelicidade está a civilização, sem a qual não podemos subsistir, mas que nos impõe sacrifícios que nos impedem de realizar o "programa do princípio do prazer". Com efeito, o homem é por natureza um ser predatório, egoísta, avesso ao trabalho, um lobo, no sentido de Hobbes, e por isso foi obrigado a concluir um pacto social que permitisse sua sobrevivência. Mas esse pacto exigiu um preço terrível.
No plano erótico, o homem foi forçado a abrir mão do incesto, em benefício da sexualidade exogâmica; da "perversidade polimorfa", em benefício da genitalidade; e da promiscuidade, em benefício da monogamia. E teve que abdicar da gratificação indiscriminada dos seus impulsos agressivos. Essas renúncias são impostas em parte pela autoridade externa. E em parte pela ação da autoridade externa introjetada, o supereu, continuação endopsíquica do pai e dos seus sucedâneos no mundo adulto. Com cada sacrifício pulsional, a culpa aumenta, em vez de diminuir. Eis o mal-estar: frustração e culpa. O ressentimento contra a civilização é uma conseqüência lógica desse mal-estar.


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Freud apostava no Iluminismo, sabendo que podia perder a aposta
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Mas a civilização em si está atravessada por forças contraditórias. O mesmo dualismo que rege a vida psíquica do indivíduo -pulsão da vida (Eros) versus pulsão da morte (Tânatos)- se manifesta na civilização. O trabalho da civilização é conduzido por Eros, cuja vocação imanente é ligar conjuntos cada vez mais vastos -famílias, povos, nações, humanidade.
Mas esse objetivo é contrariado por Tânatos, a pulsão da morte, que, extrojetada, pode transformar-se em destrutividade cega. Eros liga, Tânatos desliga e dissocia. Mas a relação entre Eros e a civilização está longe de ser unívoca. Por um lado, a civilização inibe e restringe os impulsos eróticos do indivíduo, por sua natureza associais e infensos a limites externos.
E, por outro lado, a vocação de Eros de criar conjuntos cada vez mais amplos é bloqueada pelo narcisismo de grupo, o "narcisismo das pequenas diferenças", que leva os membros de uma comunidade a entrincheirar-se em sua identidade coletiva, hostilizando os membros de outro grupos. Ou seja, Eros fica fiel à sua essência quando cria laços de identificação intragrupal.
Mas essa coesão é obtida a um custo altíssimo, o deslocamento dos impulsos agressivos para fora. O resultado é o nacionalismo, a rivalidade entre as nações e a guerra. Fica em aberto o desfecho do drama da civilização: na batalha "titânica" travada entre os dois "poderes celestiais", Eros e Tânatos, pode-se esperar que Eros leve a melhor, mas ninguém poderá prever o resultado final.

Duas deformações
"O Mal-Estar na Civilização" despertou e continua a despertar controvérsias apaixonadas. As reações ao livro podem ser distribuídas em duas correntes. Uma delas, de orientação marxista, critica o pessimismo de Freud e admite a possibilidade de que, numa sociedade mais justa, Eros consiga controlar o potencial de aniquilamento de Tânatos e de que a razão, Logos, venha a assumir um papel mais decisivo na administração dos impulsos humanos, em detrimento dos mecanismos inconscientes (Reich, Marcuse).
A outra, pelo contrário, radicaliza esse pessimismo, afirmando que nenhuma transformação social poderia alterar os dados básicos do psiquismo humano, que incluem a necessidade da ilusão, alimentada por processos inconscientes, e o livre funcionamento da pulsão da morte.
A meu ver, são duas deformações de Freud. A primeira é uma deformação angelista. O homem é visto como um puro efeito das relações sociais. É nelas que está radicado o mal. Transformadas essas relações, a inocência natural do homem virá à tona. Há algo de gnóstico nessa visão, uma certa rejeição do corpo, uma certa desmaterialização da "physis": para essa corrente, o homem não é carnal, é social.
A segunda é uma deformação naturalista. O homem é o que é, em sua materialidade, em sua biologia, em seu psiquismo. Seu destino está predeterminado por essa realidade, e todos os esforços para modifica-la são ou utópicos ou indesejáveis.
As duas deformações têm algo de teológico. A primeira vem de uma teologia otimista, que nega o pecado original. A segunda vem de uma teologia pessimista, agostiniana, que parte da hipótese de uma "natura deleta", de uma depravação hereditária do homem, capaz de resistir a todas as transformações sociais.
Uma releitura sem preconceitos de "O Mal-Estar na Civilização" mostra que Freud se situa entre essas duas perspectivas. Ele permanece aquém do angelismo e vai além do naturalismo. É claramente anti-angelista quando aceita como parte de nossa herança antropológica a existência de uma predisposição à violência e quando afirma a existência de um aparelho pulsional especificamente humano, além do mero instinto, que condena o homem à falta, ao inacabamento, à frustração socialmente necessária.
É resolutamente anti-angelista quando nega que a revolução social possa modificar dados fundamentais da natureza humana, como a propensão à agressividade.

Certezas e dúvidas
Mas vai além do naturalismo, na medida em que reconhece a influência fortíssima do mundo social. Existe, para ele, uma violência externa ilegítima, que não visa manter a vida civilizada como tal, e sim perpetuar uma ordem social injusta. O que significa, em linguagem clara, que boa parte da repressão pulsional se tornaria supérflua no momento em que fossem corrigidas as assimetrias de riqueza e de poder, reduzindo um dos fatores que contribuem para a infelicidade humana.
A verdade é que Freud era ao mesmo tempo um pensador iluminista e um cético. Apostava no Iluminismo, sabendo que podia perder a aposta. Enquanto iluminista, acreditava na utopia de uma consciência transparente para si mesma, no plano individual, e na utopia de uma sociedade regida pela razão, no plano coletivo. Enquanto cético, duvidava da viabilidade desse duplo programa e distanciava-se de qualquer utopia.
Num mundo em que nem podemos aderir às antigas certezas nem resignar-nos a uma vida sem esperança, é importante seguirmos o exemplo de Freud. Ele nos permite combinar fé e dúvida, a crença na emancipação com a suspeita de que a salvação não é deste mundo.



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Sergio Paulo Rouanet é sociólogo, autor de "Os Dez Amigos de Freud" (dois volumes, Companhia das Letras).
22/03/2006
Eu escolho minha morte
Assim transcorreram os últimos dias de uma doente terminal que decidiu deixar de viver e pediu ajuda

Por Rodrigo Carrizo

Josiane Chevrier sofria de um câncer terminal que havia transformado sua vida em um pesadelo sem escapatória. Na Suíça, onde vivia, é legal ajudar uma pessoa que queira se suicidar. Existem inclusive associações que se encarregam disso. "El País" esteve com essa mulher e com os voluntários da Exit que puseram ao alcance de sua mão um veneno misturado com suco de laranja.

O encontro foi às 8 da manhã de um sábado gelado, há oito dias. Depois de um longo trajeto em uma estrada de montanha, os voluntários da associação e o cronista chegaram pontualmente à modesta casa de Josiane Chevrier, de 68 anos, onde os esperavam uma de suas três filhas, Anne, 42, e sua neta Julie, 20. Suas duas outras filhas haviam se despedido com um jantar na noite anterior. Não tiveram forças suficientes para assistir a um acontecimento difícil, controvertido, arrasador, que beira sinuosamente a estreita linha entre a legalidade e a ilegalidade, entre a ética e a realidade: o suicídio de sua própria mãe.

A paciente, tranqüila, parecia ansiosa para começar o procedimento de eutanásia, que aqui chamam de "auto-entrega".

É assim: dois acompanhantes, voluntários de uma associação cujo objetivo é ajudar os suicidas, perguntam ao paciente se está realmente decidido. Josiane estava. O resto é simples. Deram-lhe duas pílulas que têm como missão abrir a digestão e impedir os vômitos. Depois lhe dão 20 minutos para refletir e despedir-se de parentes e amigos.

Dissemos simples? Josiane empregou esses 20 minutos para falar com sua filha e sua neta em particular. Também para ler para si mesma uma oração que havia escrito dias antes. Depois pediu para sua filha não chorar. Em uma mesa havia um copo com uma dose letal de pentobarbital misturado com suco de laranja. Com um incrível senso de humor, Josiane comentou que pela cor a "poção mágica" parecia um copo do aperitivo Cynar.

O pentobarbital, utilizado como poderoso anestésico, é mortal a partir de 5 gramas. No copo que Josiane tomou havia mais de 10. A paciente o ingeriu. Cinco minutos depois começou a bocejar e recostou-se na cama. Eram dez e meia passadas.

Depois da morte, todos os assistentes se reuniram na sala da casa para conversar e tomar um chá. A tranqüilidade e naturalidade da cena pareciam irreais e quase difíceis de imaginar em outros contextos culturais.

Quando tudo terminou, Julie, a neta, comentou: "Durante semanas me perguntei quais seriam nossas últimas palavras. O incrível foi que não dissemos nada especial. Foi uma conversa normal, como as de todos os dias". Pouco depois Julie saiu para a tempestade de neve que se havia formado lá fora para fumar um cigarro e, muito provavelmente, liberar as lágrimas retidas na presença de sua avó.

O passo seguinte foi informar a polícia, que enviou um jovem e compreensivo oficial para comprovar que não havia ocorrido qualquer violência nem existia suspeita de assassinato e para assinar os documentos pertinentes. Instantes depois chegou a médica legista para certificar o óbito e chamar os serviços funerários, enquanto os presentes conversavam ao redor da mesa instalada a menos de 2 metros do cadáver. Todo o processo foi, nas palavras de um dos voluntários, Philippe Dekens, excepcionalmente simples e rápido: "O importante é a convicção e o desejo de partir da paciente".

Três dias antes, na quarta-feira, 8 de março, Josiane havia comentado com a mesma serenidade com que enfrentou seu último instante o que mais lhe causava medo no processo: "Que o tumor tenha avançado tanto que me impeça de ingerir a poção".

Essa mulher, pianista e professora de música, uma apaixonada por Bach, suportava havia dez anos um câncer de mama que nos últimos tempos lhe havia alcançado a garganta. As dores eram tais que precisava consumir morfina de forma maciça e cotidiana. "No início tentei não encarar o problema com demasiada dramaticidade", explicava. Não quis seguir nenhum tratamento convencional, nem submeter-se a quimioterapia. Optou por terapias alternativas e homeopatia, segundo sua militância ecologista. Não via inconveniente em contar sua vida, em explicar os passos que a haviam levado a tomar essa decisão que se materializaria três dias depois. Muitas vezes seu discurso era interrompido por causa do câncer avançado, que lhe provocava problemas de voz e cada vez mais dificuldade para ingerir alimentos ou bebidas. O mal havia entrado em uma fase chamada de "necrose nauseabunda", o que em termos claros quer dizer putrefação. Toda a casa nessa quarta-feira estava impregnada do odor adocicado, desagradável e inesquecível da doença.

Josiane, divorciada, tinha três filhas maiores de 40 anos. Passou a etapa final de sua vida em um povoado na Suíça ocidental, no fundo do vale de Joux, entre montanhas de extrema beleza. A paciente optou por viver nesse local de Le Brassus para poder praticar seu passatempo favorito: a caminhada em plena natureza. "Durante oito anos vivi muito bem, sem muitas dores nem incômodos", afirmou nessa tarde de quarta-feira. Até que a situação se tornou intolerável e suas condições de vida degeneraram a ponto de tornar sua existência insuportável.

A partir daqui, a história dessa mulher teria sido semelhante à de milhões de doentes graves ou em fase terminal, exceto por um detalhe: Josiane era suíça. E nesse país a assistência ao suicídio não é proibida, mesmo que aqueles que a pratiquem não pertençam à profissão médica. Um curioso vazio jurídico, que partiu da absolvição de um militar que nos anos 20 emprestou sua pistola a um companheiro apaixonado e desprezado para que se suicidasse com um tiro, desembocou no artigo 115 do Código Penal suíço, que permite a "morte com dignidade".

Josiane decidiu fazer uso desse direito, e em 17 de outubro passado chamou a Exit. Não só isso. Josiane também concordou que um jornalista acompanhasse a ela e a seus parentes mais íntimos em seus últimos dias. "Mas não sei o que posso ter de interessante para contar", dizia. Mas nada de fotografias. Josiane, uma mulher de olhar claro e cabelo curto e grisalho, conservou até o final uma vaidade e um pudor que o impediu. "Ninguém quer ver o rosto de um doente terminal", explicou. Sua residência, a poucos passos da praça central do povoado, é modesta e tipicamente suíça. Com dois elementos de destaque: um velho cravo e centenas de livros.

"Conheci a Exit graças a alguns amigos que eram membros e que afirmavam que pertencer a essa associação lhes dava uma grande segurança, pois sabiam que eram os únicos donos de seu destino", comentou Josiane. Seu médico de cabeceira, embora a tenha respeitado, reprovou sua decisão e negou-se a estar presente no momento da despedida.

A Exit demorou quatro meses para aprovar o pedido de Josiane.

Até 1º de fevereiro não aceitou que seus membros acompanhassem e ajudassem até o final a professora de piano e lhe proporcionassem a substância letal necessária para efetivar sua "auto-entrega". Antes a associação precisou verificar que a mulher cumpria os requisitos que ela exige de qualquer pessoa que peça sua ajuda: capacidade de discernimento, que o pedido seja sério e repetido, que sofra de uma doença incurável e mortal e que além disso esta provoque grande sofrimento físico e psíquico.

Uma restrição adicional é o fato de que é preciso ser suíço. O motivo é que fora da Suíça ajudar um suicida é proibido, o que acarreta grande dificuldade para encontrar voluntários ou, no caso de encontrá-los, "muito desgaste emocional nos voluntários", segundo Jerôme Sobel, 53, prestigioso médico e fundador e presidente da Exit.

Essa associação, de que na Espanha existe um ramo chamado Direito a Morrer Dignamente, funciona na Suíça desde 1982 e conta com mais de 67 mil associados que pagam uma cota anual de 20 euros. Em 2005 ajudou 350 doentes a morrer. Sobel defende que "o fim da vida faça parte do plano oficial de estudos da escola de medicina" e afirma que seu maior desejo é que "a Exit desapareça e sua função seja desempenhada pelo médico de cabeceira".

"Minhas filhas concordaram com minha decisão, pois não quiseram me ver passar pelo inferno dos hospitais", comentou Josiane em sua casa, com a mesma calma de sempre, antes de acrescentar: "Não é a morte que me dá medo, mas o fato de não poder viver normalmente". A paciente mostrou-se convencida de que teve "uma vida plena", mas mesmo assim considerou: "É um pouco injusto partir agora e desta maneira. Não é o que eu imaginava como final da vida".

A paciente se confessou católica de formação, mas não praticante, embora tenha se declarado "convencida da existência de uma presença superior e benévola". Na opinião dela, não existe "qualquer contradição entre as crenças e a decisão adotada".

Na primeira semana de março, alguns dias antes de morrer, Josiane conheceu os dois voluntários que iriam acompanhá-la em todo o processo e que se encarregariam de lhe proporcionar, em seu devido tempo, um copo com o suco de laranja e pentobarbital. Eles se chamam Philippe Dekens e Dominique Roethlisberger.

Dekens, 55, é enfermeiro, de origem belga e vive na Suíça há dez anos. Uma experiência pessoal "próxima da morte" há dois anos o sensibilizou para o tema e ele decidiu ingressar na Exit. Realizou cinco "acompanhamentos" em 2005 e dois neste ano. Agora prepara-se para ajudar um paciente de 41 anos, vítima de câncer de próstata. Considera-se "um mero executor do desejo do paciente". Roethlisberger, por sua vez, é uma enfermeira especializada em psiquiatria que trabalha há seis anos com a associação. Segundo sua experiência, "em geral os pacientes estão tão convencidos de sua decisão que perderam o medo". Eles trabalham em equipe, o que é extremamente incomum na estrutura da Exit.

Marianne Tendon ingressou na associação em 1986 e hoje é a decana dos acompanhantes. Afirma que "uma das características mais duras do trabalho é que se estabelecem vínculos muito fortes com pessoas que serão perdidas em pouco tempo". Ex-educadora e enfermeira, Tendon afirma que nunca acompanha alguém com dúvidas, "seja por motivos éticos ou religiosos". Também opina que "as pessoas têm o direito de ser contra o suicídio assistido, mas só em sua própria vida", e que "ninguém tem direito a legislar sobre o sofrimento alheio".

O encontro final entre os dois acompanhantes e Josiane foi marcado para sábado, 11 de março. "Não tenho nenhum medo pelas questões práticas da vida dos que ficam, nem pelo que aconteça depois de minha partida, pois tive tempo de cuidar de tudo", contou Josiane três dias antes de morrer.

Sua "auto-entrega" foi combinada com sua família. "Tomei a decisão final no momento em que senti que tanto eu como minhas filhas estávamos maduras para assimilar isso", acrescenta. Nunca pensou em aceitar os cuidados paliativos que lhe ofereceram. "Todos esses tratamentos e terapias são tão caros e complicados que terminam sendo uma sangria inútil para a família e a sociedade", opinava com um pragmatismo tipicamente suíço.

A Exit não é a única associação suíça que assiste o suicídio. A segunda e mais conhecida internacionalmente é a Dignitas. Nascida em 1997, produto de uma cisão da Exit, situada em Zurique e fundada pelo advogado Ludwig Minelli, a Dignitas aceita pacientes estrangeiros. Essa prática controversa deu origem ao termo "turismo da morte", diante da grande quantidade de europeus que acorrem à Suíça em busca da ajuda que não podem obter em seus países. O Reino Unido convocou um debate parlamentar sobre o assunto este mês, diante do crescente número de cidadãos britânicos que recorrem aos serviços da Dignitas.

Minelli, que para justificar sua tese afirma que, por exemplo, na Alemanha "há um suicídio a cada 47 minutos", considera que "a sociedade aplica ao suicídio assistido a mesma hipocrisia que em seu tempo aplicou ao aborto".

Sem sentimentalismos

No sábado frio do encontro com Josiane em sua casa em Le Brassus, durante a viagem de carro, os dois voluntários da Exit se dedicaram a comentar outros casos, passados e atuais, com uma sobriedade absolutamente despida de sentimentalismo.

Pela conversa desfilaram todos os males que atacam os seres humanos: câncer, esclerose múltipla, Parkinson e diversas doenças degenerativas. Dekens refletia em voz alta: "No dia do acompanhamento não nos damos conta do que aconteceu. O golpe costuma chegar dois ou três dias depois, quando tudo já terminou". E acrescentou: "Muitas vezes se estabelece uma forte cumplicidade entre eu e o paciente. Tento, na medida do possível, não me apegar demais a eles, embora nem sempre seja possível. De outra maneira, esse voluntariado se transformaria em uma carga insuportável para qualquer um".

"As famílias em geral estão tranqüilas e aceitam a decisão", acrescentou. "Mas às vezes, raramente, encontramos uma hostilidade muito clara." O enfermeiro belga lembrou um caso em que o filho de um paciente começou a falar com seu pai, que acabara de tomar a poção, e a lhe pedir que não se fosse. Ele demorou mais de seis horas para morrer. O motivo, segundo o enfermeiro, estaria no inconsciente do doente: "Continuava trabalhando, mesmo sob o efeito do pentobarbital, impedindo que o corpo se entregasse para não magoar o filho que lhe pedia que não partisse".

Assim chegaram ao povoado de Josiane. Eram 8 da manhã.

Horas depois, com a chegada do médico legista e da polícia, os dois voluntários da Exit dão por terminada sua tarefa. E deixam a casa da mulher vítima de câncer para cumprir um ritual inevitável depois de cada "acompanhamento". Eles chamam de "fazer um banquete". Um restaurante de montanha recebeu os voluntários, que, com carnes regadas com uma generosa dose de vinhos franceses, comentaram os incidentes da partida de Josiane. Os comensais das mesas vizinhas mostravam-se visivelmente perturbados pelo tema da conversa. Mas eles falavam sem deixar que a sombra da tragédia ocupasse a mesa.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

IMPRIMIR ENVIAR POR EMAIL COMUNICAR ERRO 26/08/2006 - 03h20
Entrevista com Philip Roth: "A velhice é um massacre"

Volker Hage
O mais recente trabalho de Philip Roth chega às livrarias alemãs este mês. Seu tema? Doença, mortalidade, morrer. SPIEGEL falou com Roth sobre por que os escritores preferem o adultério à doença e ao absurdo da morte.

DER SPIEGEL - Senhor Roth, seu novo livro, "Everyman" [O Homem Comum] empresta o título de uma alegoria anônima do século 15. O escritor austríaco Hugo von Hofmannsthal fez o mesmo, chamando
de "Jedermann" sua peça de 1912...

Philip Roth -... mas ele manteve a perspectiva cristã. E a alegoria. E é didático. O meu não é didático. Não é alegórico.

Spiegel - Então por que o senhor aproveitou o título para seu livro?

Roth - Ele não começou pelo título. No percurso eu tive vários títulos. Somente no final lembrei-me dessa peça, que havia lido na faculdade. Eu não a lia desde 1952, 54 anos atrás. Reli e achei que era o título certo. Mas não estava pensando no drama medieval quando escrevi meu livro.

Spiegel - O que o senhor pensava quando o começou? Aonde queria chegar?

Roth - Contar a história da vida de um homem através de suas doenças - através das ameaças físicas à sua vida. A linha da narrativa seria ditada pela história de suas doenças. Eu pensei em outros livros sobre doença. Você poderia imaginar que existem muitos. Não existem. Há o famoso "A Montanha Mágica" de Thomas Mann, há "A Morte de Ivan Ilyich" de Tolstói e o "Pavilhão de Cancerosos" de Soljenitsin, que é um livro maravilhoso. Além desses, existem muito poucos que eu conheça nos quais a doença é o tema central.

Spiegel - Uma observação interessante. O que o senhor acha que seus colegas temem?

Roth - Por que existem mais livros sobre adultério do que sobre
enfisema, câncer e diabetes? Não sei, mas eu não diria que é por medo.
Suspeito que eu não seja o único escritor do mundo cuja atenção se voltou para a doença. Nós sofremos muito mais doenças do que as pessoas do século 15, porque hoje, de modo geral, as pessoas são mantidas por muito tempo antes que uma doença finalmente as mate. Hoje você pode ligar para seu amigo para perguntar se seu tratamento de radiação terminou ou qual foi o resultado de sua biópsia. Todos nós sabemos muito sobre assuntos médicos hoje em dia. Isso também pode explicar como fui escrever este livro.

Spiegel - "Everyman" é bastante curto para um romance - como seu livro anterior, "O Animal Agonizante". O senhor pensa em escrever livros mais curtos no futuro?

Roth - Conforme minha energia declina, isso poderá acontecer. Eu gostei de escrever "O Animal Agonizante". E quis tentar novamente escrever um livro daquele tamanho. Você precisa ter uma história cujo impacto seja imediato, para que seja curta.

Spiegel - Mas "Everyman" começa lentamente.

Roth - Com o funeral. Então vem a infância e o início de sua educação em mortalidade, começando por suas observações do menino no leito de hospital ao lado do dele, que morre.

Spiegel - Mas embora o livro comece com seu funeral o leitor passa grande parte do livro esperando que o herói não morra. O senhor considera o fato de ele não sofrer como uma espécie de final feliz?

Roth - O que é para mim não está aqui nem ali. Eu não experimento dor ou felicidade por causa do destino do personagem. O que eu tenho de experimentar é a sensação da inevitabilidade daquele destino. Eu quero que o leitor saiba desde o início que esse homem está morto, quem são as pessoas no seu enterro e o que elas dizem sobre ele. Quando isso está definido, dou vida na história a suas crises físicas e a sua catástrofe final.

Spiegel - Por que o herói não tem nome?

Roth - Isso foi um acaso, para começar. Eu não percebi que não lhe havia dado um nome até que me sentei para ler o primeiro rascunho. Então decidi deixar assim. Que ele fosse definido por suas relações com os outros, com seu pai e sua mãe, seu irmão, suas mulheres, sua filha. Todos podemos nos sentir definidos por nossos nomes, mas na verdade o que nos define é nossa relação com a rede de pessoas que conhecemos. É isso que somos.

Spiegel - E sobre o enterro no início? Ele reflete algum em que o senhor esteve recentemente?

Roth - Eu perdi cerca de três ou quatro amigos no período de um ano. Seu amigo adoece, morre e então você vai ao enterro. Saul Bellow foi o último, e era a pessoa mais próxima de mim. Tenho olhado para dentro de tantos túmulos ultimamente, que pensei, bem, está na hora de escrever sobre isso.

Spiegel - O senhor começou a escrever no dia em que Saul Bellow foi enterrado. Como foi o enterro dele?

Roth - Havia provavelmente 120 pessoas em um pequeno cemitério numa cidade pequena de Vermont. Foi muito forte para todos. A grandeza desse homem acrescentava outra dimensão a nossas reações. Um grande homem havia morrido. Existem muito poucos grandes entre nós. Isso acrescenta um certo viés à dor.

Spiegel - Talvez se possa supor que a sentença mais citada do seu livro será - se já não for: "A velhice não é uma batalha, é um massacre".

Roth - Eu estava assistindo ao noticiário da televisão sobre as inundações em Nova Orleans enquanto eles estavam evacuando as casas de velhos - e disse em voz alta para a pessoa que estava comigo: "A velhice é um massacre". Parecia que estavam retirando pessoas de um campo de batalha.

Spiegel - Esse pensamento, e o tema, tornaram esse livro mais difícil de escrever do que os anteriores?

Roth - Não. Só foi difícil na medida em que escrever qualquer livro é difícil. Não foi difícil por causa do assunto. Foi difícil porque tive de imaginar como fazê-lo, mas essa é a dificuldade comum. O tema não causou dificuldades especiais.

Spiegel - Mas poderá causar para os leitores. O senhor escreve que nada ajuda alguém a chegar a um compromisso com o conhecimento "de que você nasceu para viver e, em vez disso, morre".

Roth - Não, nada ajuda. As pessoas fazem o possível para afastar esse conhecimento. Há os que têm o consolo de uma religião que promete que eles não morrerão. Eu não vejo como podem acreditar nisso, mas as pessoas podem acreditar em todo tipo de coisa das quais não há absolutamente qualquer evidência. A maioria dos meus amigos mais velhos diz mais ou menos o que eu digo, que pensa menos na morte hoje do que pensava quando era adolescente.

A primeira descoberta foi muito chocante. A morte parecia tão injusta. É assim que você pensa quando tem 14 anos - que é tão injusta e ridícula. Eu acho que quanto mais a morte se aproxima mais as pessoas tentam simplesmente não pensar nela. Mas há aqueles que são perseguidos por ela. Lembro-me do poeta Robert Lowell, que era 22 anos mais velho que eu. E ele me disse que depois dos 50 anos não se passa um dia sem que a morte entre em sua cabeça.

Spiegel - Mas essa não foi sua experiência?

Roth - Não. Eu só penso nela dia sim, dia não. Mas nesta idade, mesmo que você não pense, é lembrado dela por causa do desaparecimento de seus velhos amigos e todas as visitas a hospitais que você faz aos doentes e agonizantes. Um amigo está em radiação, outro está em quimioterapia. É quase um acontecimento semanal alguém ter um melanoma removido. Não era assim quando éramos jovens. Lembro de meus pais falando sobre seus amigos que estavam doentes ou morrendo, e apesar de eu já ter meus 40 anos na época não compreendia. Acho que deve haver alguma salvaguarda biológica embutida aí que não permite que as pessoas abaixo de certa idade realmente entendam que a morte acontece o tempo todo e supera tudo. Mesmo quando meus pais estavam perdendo alguns de seus melhores amigos, eu escutava. Mas não entendia tudo o que eles estavam perdendo. Hoje entendo.

PHILIP ROTH, 73, é um dos melhores autores americanos contemporâneos.
Nascido em Newark, Nova Jersey, suas obras mais famosas incluem "O Complexo de Portnoy", que foi publicado em 1969, e seus trabalhos mais recentes "Casei com um Comunista" (1998) e "A Marca Humana" (2000). Ele ganhou o Prêmio Pulitzer por seu romance de 1997 "Pastoral Americana". Seu livro mais recente, "Everyman", examina de perto a doença e a morte e foi publicado nos EUA em abril.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Caso de suicídio assistido vai à Suprema Corte

Charlie Savage

Em Washington
A emocionalmente carregada questão do suicídio assistido pelo médico foi levada para a Suprema Corte nesta quarta-feira (05/10) pelo governo Bush. Sua intenção é impedir a primeira lei do país, do Oregon, que permite que os médicos ajudem pacientes terminais a porem fim em suas vidas.

A questão levou dezenas de manifestantes apaixonados para a corte. Os juizes analisaram um recurso do Estado do Oregon contra uma decisão de novembro de 2001, do ex-advogado geral John Ashcroft, determinando que médicos que receitam drogas letais podem ser processados e perder seus privilégios.

Com o juiz John G. Roberts Jr. presidindo seu primeiro caso de grande importância, o procurador-geral Paul Clement argumentou que o Ato de Substâncias Controladas confere poderes ao advogado-geral para determinar que médicos não podem receitar narcóticos para ajudar pacientes a se matarem, pois isso não é um "propósito médico legítimo". Esse argumento daria ao governo Bush o poder de derrubar a lei do Oregon.

Mas Robert Atkinson, assistente do advogado-geral do Oregon, respondeu que o Congresso só visava o problema de abuso de drogas de recreação quando aprovou o Ato de Substâncias Controladas. Como as práticas médicas são reguladas pelos Estados, Ashcroft excedeu sua autoridade e sua decisão deve ser derrubada, argumentou.

"Esse é um caso de federalismo e da relação entre a soberania dos Estados e do governo federal", disse Atkinson. "Está claro que o Congresso queria respeitar a responsabilidade dos Estados de regulamentar suas práticas médicas."

Em 1997, o Oregon tornou-se o primeiro Estado a permitir que os médicos ajudassem pacientes com condições de saúde fatais e dolorosas a terminarem suas vidas. A decisão de Ashcroft para bloquear a medida do Oregon foi alardeada como uma vitória política dos conservadores religiosos.

Desde que a lei entrou em vigor, 208 pessoas com doenças terminais a usaram para apressar sua própria morte. Legisladores em Vermont, Califórnia e Hawaii propuseram medidas similares, até agora sem sucesso. Ativistas disseram que o destino do movimento pelo "direito de morrer" depende do caso de quarta-feira, cujo resultado é incerto.

"Este caso tem uma importância enorme para os cidadãos do Oregon, que querem saber se têm a opção de uma morte pacífica e humana caso o fim de suas vidas se torne extremamente prolongado e marcado por profundo sofrimento. É importante para eles e é importante para a nação, que está acompanhando o processo", disse Kathryn Tucker do grupo Compassion & Choices.

O caso também é importante para grupos contra o aborto, que estão tentando chamar a atenção para o valor de preservar a vida até em circunstâncias difíceis. O Comitê Nacional do Direito à Vida reuniu dados para dar suporte à posição do governo, disse James Bopp Jr., assessor geral do grupo, que observou que a maior parte dos Estados tem leis contra o suicídio assistido.

"A grande maioria dos Estados reconhece que todo paciente tem qualidade e valor, e não quer que os pacientes sejam forçados a optar pela morte" para economizar em custos médicos, disse Bopp.

Dentro da corte, porém, houve pouca discussão sobre autodeterminação ou a santidade da vida. Em vez disso, os juizes se concentraram no âmbito da autoridade dada ao advogado-geral pelo Ato de Substâncias Controladas.

A juíza Sandra Day O'Connor quis saber se um hipotético advogado-geral que se opusesse à pena de morte poderia usar o Ato de Substâncias Controladas para impedir execuções estaduais, declarando que as injeções letais não eram um "propósito médico legítimo". Clement disse que uma lei de pena de morte federal de 1984 provavelmente impediria isso.

O'Connor, que está se aposentando, talvez não tome parte da decisão final, se sua substituta for confirmada antes de a corte votar o caso. No início da semana, o presidente Bush nomeou sua assessora na Casa Branca, Harriet E. Miers, para preencher sua vaga.

Os juizes também analisaram até onde um Estado pode ir em questões de regulamentação de práticas médicas.

O juiz Stephen G. Breyer perguntou a Atkinson se um Estado poderia permitir que médicos receitassem cocaína ou morfina para fazer as pessoas se sentirem melhor. Na teoria, os Estados têm esse poder, respondeu Atkinson, mas insistiu que os Estados têm uma história de 200 anos de "regulação responsável da prática de medicina".

A última vez que a corte estudou o conflito entre regulamentos médicos estaduais e leis federais de drogas foi no último mandato, quando determinou por 6 votos a 3 que o governo Bush poderia usar seu poder de comércio interestadual para invalidar uma lei da Califórnia legalizando o uso médico da maconha. Sob a lei federal, a maconha, diferente dos narcóticos, nunca pode ser receitada por um médico.

Em 1997, a corte manteve unanimemente leis estaduais proibindo os médicos de receitarem drogas letais para pacientes terminais, sustentando que a Constituição não prevê um "direito de morrer". No entanto, deixou a porta aberta para os Estados aprovarem suas próprias leis. Na época, o governo Clinton tinha argumentado que cabia aos Estados decidir sobre sua política de suicídio assistido, como observou a juíza Ruth Bader Ginsburg.

O Ato de Morte com Dignidade do Oregon foi aprovado duas vezes pelos eleitores. Sob a lei, dois médicos devem se certificar que os pacientes que querem acabar com suas vidas estão mentalmente sãos e que têm menos de seis meses de vida. Um médico então escreve uma receita de uma dose legal de drogas, que os pacientes devem administrar sozinhos.

A decisão de Ashcroft nunca chegou a vigorar, porque o Oregon imediatamente entrou com processo para detê-la, vencendo na corte distrital e na corte de apelações. A Suprema Corte deve emitir sua opinião sobre o caso antes de junho de 2006
Algumas Considerações Sobre a Ética a Nicômaco de Aristóteles.



A ética Nicomaquéia é a que trata dos conceitos de Aristóteles com maiores detalhes, se a compararmos com a Ética Eudemia do mesmo autor. Por esse motivo vamos nos concentrar em algumas discussões contidas na Ética a Nicômaco.



A análise do texto aludido, nos leva à conclusão de que, em sua ética, Aristóteles preocupa-se, acima de tudo, com o bem humano . Esse bem é determinado por dois fatores:



1) um fator bastante constante, a natureza humana , que se constitui de uma série de elementos corporais ligados a uma forma dinâmica por ele chamada de alma (psyché, donde se origina o adjetivo psíquico).



2) um segundo fator variável, o conjunto de circunstâncias concretas, chamadas pelos gregos de ocasião.



O homem que consegue organizar as possibilidades de sua própria natureza (sem rebaixá-las nem sobrestimá-las) e ainda leva em conta as circunstâncias que o rodeiam, utilizando-as como apoio e não como obstáculo à sua ação, alcança o bem que deseja, isto é, consegue levar uma boa vida.



Essa boa vida, que todo ser humano almeja, é o que chamamos de felicidade (eudaimônia),que se refere a uma certa forma de viver - não se trata de um estado mas sim de uma atividade do homem; tal atividade deve seguir certas normas coerentes com a natureza humana - no entanto, como a natureza humana é complexa e muitas vezes apresenta tendências opostas, é preciso submetê-la a certas regras ou critérios racionais que a equilibrem - conseguir esse equilíbrio é o que Aristóteles chama de possuir a virtude, componente essencial da felicidade.A virtude impede que tendências opostas entrem em choque trazendo efeitos destrutivos para o ser humano.



Aristóteles distingue dois tipos de virtude:



1) as virtudes intelectuais ou virtudes da mente.



2) as virtudes morais, que consistem no controle das paixões, movimentos espontâneos do caráter humano.



A virtude não é, diversamente da felicidade, uma atividade, senão que um hábito, ou maneira habitual de ser; como tal, não pode ser adquirida da noite para o dia, porque depende de muito exercício - repetindo certos atos o homem acaba por transformá-los numa segunda natureza, isto é, numa disposição (e não atividade) para no futuro agir sempre da mesma forma.



O processo é sempre o mesmo, sejam os atos bons ou maus : no primeiro caso temos a virtude e, no segundo, o vício.



Quando se adquire uma virtude, age-se de acordo com ela sem esforço e com prazer, porque se aje de acordo com a própria natureza ; o vício, ao contrário, acaba por trazer desprazer uma vez que se coloca contra a natureza.



A atividade daquele que age de acordo com os bons hábitos que adquiriu durante a maior parte de sua vida é o que chamamos de felicidade.A felicidade mais perfeita é a que se baseia no exercício da virtude igualmente mais perfeita, da virtude de maior excelência, a sabedoria, que é a contemplação das verdades fundamentais da ciência e da filosofia. Também a felicidade mais auto-suficiente, porque não precisa de bens materiais para se efetivar.



Vimos, portanto, que o objeto da ética aristotélica é o estudo da felicidade como supremo fim ou bem do ser humano. Mas, como a condição fundamental para a realização da felicidade é a virtude, e esta só pode ser adquirida mediante exercício e esforço, o homem tem que desenvolver mecanismos de ação que garantam a sua aquisição.Tais mecanismos são a educação e as leis. A educação deverá desenvolver no homem os hábitos virtuosos; as leis organizarão e protegerão o exercício da virtude pelos membros da sociedade.



Podemos concluir, afirmando que a ética tem o seu prolongamento no que se constitui no ápice da filosofia prática: a política.



Aristóteles, Ética Nicomaqueia, (Santillana, S.A., Madrid, 1997).



ARISTÓTELES E A JUSTIÇA



Na apreciação da doutrina moral de Aristóteles, deve-se dedicar especial atenção aos estudos específicos do filósofo, referentes à Justiça e ao que os gregos chamavam de Amizade, que, hoje em dia, denominamos sociabilidade, em seu sentido mais amplo.Os dois temas estão inclusão dos na ética a Nicômaco



De acordo com Aristóteles, todos estão em perfeito acordo em chamar justiça à disposição que nos faz capazes de realizar atos justos, que nos faz efetivamente realizá-los e que nos faz desejar realizá-los. O mesmo deve ser dito da injustiça, que nos faz cometer e querer atos injustos. Sirva-nos esta definição como definição geral.



O justo nos faz viver conforme as leis e a equidade; o injusto nos leva à ilegalidade e à desigualdade.



Também, ... designamos com uma única palavra, justo, tudo aquilo que é capaz de criar ou salvaguardar, em sua totalidade ou em parte, a felicidade da comunidade política. A lei prescreve, inclusive, a cada um, portar-se como homem valente e forte; manda, por exemplo, não abandonar o posto em combate; manda não fugir nem abandonar as armas; prescreve a sobriedade; manda, por exemplo, que não se cometa adultério nem se ultraje a ninguém; prescreve a sociabilidade: manda, por exemplo, não agredir nem falar mal de ninguém. O mesmo faz, referindo-se às outras virtudes e vícios; virtudes que manda praticar e vícios aos quais propõe entregar-se. Tudo isso de uma maneira conveniente, se a lei foi convenientemente elaborada; de forma deficiente, se a lei foi improvisada. A Justiça, assim entendida, é uma virtude completa, não em si, mas em relação a outra. Por esta razão, a Justiça parece ser a mais importante das virtudes e mais admirável que a estrela da tarde e a da manhã. E, por essa mesma razão, empregamos comumente esse provérbio: na Justiça está contida toda outra virtude.



Aristóteles distingue três tipos de Justiça:



1) Justiça distributiva, que leva em consideração a desigualdade de méritos. Assim se exprime o filósofo : No que se refere à Justiça parcial e ao direito que dela deriva, ela tem um primeiro aspecto distributivo, que consiste na distribuição das honras, riquezas e todas as demais vantagens que possam corresponder a todos os membros da sociedade. Se as pessoas não são iguais, não terão igualdade na maneira como são tratadas. Daqui vêm as disputas e contendas, quando as pessoas, em pé de igualdade, não obtêm partes iguais, ou quando, em pé de desigualdade, obtêm um tratamento igual. A coisa fica clara, se se tem em conta o mérito das partes. No que se refere às partilhas, todo mundo admite que se deve fazer de acordo com os méritos de cada um; sem dúvida, não se está ordinariamente de acordo sobre a natureza desse mérito: os democratas o põem na liberdade; os oligarcas, na riqueza ou na estirpe, e os aristocratas, na virtude.



2) Justiça reparativa, ou de emenda, que, ao contrário, restabelece o direito igual das pessoas. Como nos ensina Aristóteles, a lei são tem presente a natureza da infração, sem levar em conta as pessoas que ela põe em pé de igualdade. Pouco importa que seja este ou aquele que comete a injustiça ou a sofre, que seja este ou aquele que comete o dano ou o recebe. Por conseguinte, essa injustiça, que descansa na desigualdade, é a que se esforçar o juiz por corrigir. De fato, quando uma pessoa recebe pancadas e outro as dá, quando um indivíduo causa uma morte e outro morre, o dano e o delito não têm entre eles nenhuma relação de igualdade; o juiz tenta remediar essa desigualdade por meio da pena que inflige, reduzindo, através dela, a vantagem obtida. Se emprega comumente essas palavras num sentido geral nos casos dessa natureza, embora a expressão não parece convir a alguns deles; por exemplo, se diz do proveito do que bate em outro e do prejuízo do que é golpeado. Mas, quando o juiz avalia o mau trato, o primeiro vem a ser o que perde e o segundo o que ganha. De maneira que o igual vem a ser o exato meio termo entre o mais e o menos. ... Em consequência, a Justiça corretiva ou reparativa será o termo médio entre a ganância de um e a perda de outro. Por isso, quando ocorre entre os homens alguma diferença, eles recorrem ao juiz, que é, por assim dizer, a Justiça encarnada. Finalmente, a injustiça cometida deve ser voluntária, deve proceder de uma eleição deliberada e deve ser anterior a toda ofensa; de fato, não se comete injustiça quando se foi vítima e se devolve mal por mal.



3) Justiça comutativa, que parece dizer respeito à troca de serviços, tendo, portanto, um caráter econômico.

Muito do que Aristóteles aborda no campo da Justiça deriva das condições sociais e econômicas da sua época.

No entanto, interessa à teoria geral da Justiça sua afirmação de que a injustiça se situa nos dois extremos entre os quais está a Justiça. O extremo, isto é, o injusto exigindo mais vantagens e menos encargos dos que os que lhe são devidos é, a um tempo, um excesso e um defeito, ou no mesmo sujeito ou em dois sujeitos diferentes, conforme se considere o autor ou a vítima da injustiça.



A moral de Aristóteles foi incapaz de alçar-se acima dos preconceitos de seu meio - dedica-se a explicar em que casos o próprio direito natural perde autoridade diante do direito de família. Uma vez que, diz ele, ninguém pratica injustiça contra si próprio e o escravo e a criança são partes daqueles de quem dependem (o dono ou o pai), nenhum dos dois possui direito - se não têm direito, não pode haver injustiça para com eles!



O direito familiar atribui à mulher um estatuto político superior.



Como vemos, o filósofo adapta suas idéias aos costumes vigentes, sem procurar alterá-los.



Aristóteles, em sua ética, refere-se à amizade , afirmando que o Homem, mesmo aquele que alcançou os mais altos níveis de intelectualidade, continua sendo o vivente sociável e nascido para a vida em comum. Seria, assim, estranho pretender que, mesmo aqueles que exercem a atividade mais elevada e agradável - a contemplação -, pudessem viver solitários e encerrados em si mesmos. Preciso que haja colaboração, homens entregues ao mesmo esforço intelectual, sustentando-se, mutuamente, em seu esforço. Tal amizade ou sociabilidade, orientada para o que é realmente mais útil, propícia a especulação desinteressada.



Aristóteles expressa uma decidida preferência pela lei não escrita sobre a lei escrita, talvez porque deseje evitar o erro (do qual a democracia ateniense era frequentemente acusada) de transformar a lei em instrumento puramente pragmático da vontade do povo; para Aristóteles como para Platão ela deve ser mais do que isso: deve incorporar princípios imutáveis de conduta correta que têm de estar idealmente no controle de toda atividade legislativa.



Procurar a Justiça é procurar uma autoridade neutra; e a lei é uma autoridade neutra. Mas as leis que repousam no costume não escrito são ainda mais soberanas e dizem respeito a assuntos de importância ainda mais soberana do que as leis escritas; e isso sugere que, mesmo que o governo de um homem seja mais seguro do que o império da lei escrita, pode não ser mais seguro do que o império da lei não escrita.



Referências Bibliográficas:



Aristóteles, Obras, Aguillar S/A, de Ediciones, Madrid, 1.967.

Morrall, J. B., Aristóteles, Ed.. Universidade de Brasília, 1.985.

Robin, Leon, A Moral Antiga, Ed. Despertar, Porto, 1.970.





ASPECTOS DA METAFÍSICA





ON - ENTE (particípio passado do verbo enai)

ENAI = SER - o que é

ONSIA - SUBSTÂNCIA (p. passado do verbo enai)





Toda realidade é transformável; cada realidade busca seu ato; enquanto a coisa ou realidade tende a aperfeiçoar-se, ela é potência; toda realidade tende à perfeição que se encontra onde não tem potência, ou seja, tende ao ato puro.



O ato puro pode ser comparado a um imã atraindo a limalha de ferro, isto é, toda realidade, todas as coisas, são atraídas para o ato puro, para ele convergindo em busca da perfeição.



O ato puro é , para Aristóteles, Deus, causa final, ou seja, a razão de ser de todas as coisas.



Cada uma dessas realidades é um ENTE, (em grego, on, em latim, ens); alguns desses entes têm ONSIA, isto é, consistência própria: é a substância, oposta ao acidente. O acidente não tem consistência própria, uma vez que só pode existir na substância.



Nós podemos conhecer as coisas através dos nossos sentidos, formando conceitos; os conceitos são idéias que adquirimos, não apenas pelas simples justaposição das qualidades percebidas pelos sentidos. Seu conteúdo é a íntima razão de ser delas, isto é, a sua quididade, a essência de cada objeto, que é representada pelos conceitos; - quididade - quid est res, o que a coisa é, o tipo de ser a que pertence. Ex: o conceito de circunferência representa uma determinada essência, quididade, tipo de ser, que aqui é uma figura geométrica determinada, que, permanecendo sempre uma e a mesma quanto à sua forma, (= quanto à sua significação e conteúdo: figura plana fechada cujos pontos são equidistantes de um ponto chamado centro), contudo, se pode achar numericamente multiplicada em várias circunferências, de modo que todas elas e de cada uma pode-se dizer que é uma circunferência. Assim os conceitos de homem, casa, ouro, árvore, etc... : todos os que representamos com nomes comuns.



A essência, contida na idéia, é algo de imaterial. Mais outro exemplo: diante do triângulo ABC, que pode ser traído no quadro negro com giz, os sentidos percebem esta figura individual, material, concreta, existente neste quadro negro. A inteligência, ao contrário, vão nesse triângulo aquilo que o faz ser triângulo, a sua essência (= figura fechada com três ângulos), o tipo abstrato, imutável, possível, realizável e concretizável em infinitos triângulos, e todos possuirão essa mesma essência, na qual todas as propriedades do triângulo terão razão de ser. A realização do tipo nesse triângulo poderia não acontecer: basta apagar a figura traída no quadro negro. O tipo desse triângulo, no entanto, já era possível antes que se desenhasse o triângulo ABC no quadro negro e continua eterno e imutável, mesmo depois que ABC foi apagado.



Nossos sentidos atingem, no objeto, apenas a parte sensível que é mutável e concreta; a inteligência abstrai o que é imutável e necessário.



O SER é o objeto da metafísica, cognoscível através de nossa inteligência, que é destinada a conhecer o que é, ou seja, o SER imutável e eterno, o SER enquanto SER.



ARISTÓLES: DO SER



Segundo Aristóteles, o ser é uno intrinsicamente, estavelmente e necessariamente. O que garante que o ser tenha esse sentido é o princípio de contradição: é impossível que uma coisa seja e ao mesmo tempo não seja. O princípio de contradição é, portanto, o fundamento da metafísica: o ser, enquanto ser, é necessariamente.

Esse ser, estudado por Aristóteles, é a substância, o quid da coisa, princípio e causa de todo ser. A substância (ousia) é, para ele, apenas o ser real individual, o singular: um homem, uma pedra, uma planta.



O ser é identificado por Aristóteles com a substância: esta unidade substancial que é o indivíduo, possui matéria e forma: a matéria é o princípio da individuação (isto é, o conjunto de acidentes que faz com que este ser seja este ser e não outro); a forma é a essência comum aos indivíduos da mesma espécie, pela qual todos eles são o que são (todos os homens são animais racionais). Assim, para Aristóteles, todo indivíduo ou ser vivente é a síntese desses dois princípios: a matéria e a forma. A matéria é o substrato indeterminado onde vai ocorrer a mudanças (por ex., o bloco de mármore de uma estátua ou a matéria orgânica no ser vivente); a forma é o tipo que a matéria tende a ser em ato (a idéia que o escultor realiza na estátua, a forma da espécie no ser vivente). Um ser não será qualquer outro, mas aquele que tem em si imanente em potência: por ex. uma semente de feijão tem em si, potencialmente, o pé de feijão e jamais será outro vegetal. Todo ser tende a por em ato a própria forma, este é o fim a que tende todo ser: assim, a forma é a causa final . O que dá impulso ao movimento é a causa eficiente ou motriz (os movimentos do escultor para gravar sua idéia no mármore).



Aristóteles distingue, assim, as quatro causas do devir (vir a ser): 1) Causa Material, elemento primitivo e constitutivo de todas as coisas; Causa Final, o fim pelo qual as coisas são feitas; Causa Eficiente, a causa que produz as coisas, e a Causa Formal, que é a forma ou essência de cada coisa. A causa eficiente e a final são apenas aspectos da causa formal: a eficiente é a motriz dos vários graus do desenvolvimento e a causa final é a perfeição à que o ser tende. Assim, a Matéria e a Forma são os dois princípios do devir, sem que estejam submetidas a ele - quem vem a ser é o indivíduo. A matéria é o substrato imutável e as formas, cada uma delas, eterna e indivisível, estão nos seres desde a eternidade.



Matéria e forma não podem ser separadas: não existe nenhuma matéria que não tenha forma, nem forma sem matéria. Apenas Deus é forma sem matéria.



Para Aristóteles, a matéria é a potência e a forma, o ato. A matéria é a potência de se tornar uma forma ou ato. A passagem da potência ao ato é o devir, que se situa entre dois limites extremos: a matéria pura e o Ato puro, que é Deus, pura forma. O fim último do devir é Deus.



A passagem da potência ao ato implica em movimento - todo movimento pressupõe um motor - o movimento da natureza em geral pressupõe um Motor Imóvel, ou se faria necessária uma causa para o seu movimento, outra causa para este novo movimento e assim, sucessivamente, até o infinito. O Motor Imóvel é Deus, Causa primeira do movimento universal: Ele é Ato Puro, Perfeição absoluta. Ele contém em si todas as puras formas, porque elas são o objeto do seu pensamento. A ordem do universo é a ordem do seu pensamento. O mundo existe desde toda eternidade e, portanto, não foi criado. Podemos concluir que, em Aristóteles, continua a existir o dualismo (existente em todo pensamento pagão), da Matéria (imperfeição) e da pura Forma (perfeição).



Aristóteles não trata do conceito de criação.



Platão é o filósofo do Ser, Aristóteles é o filósofo do real (da natureza) e o filósofo da ciência. Platão apontou o ser como primeiro princípio, Aristóteles, a substância, que é o real.

sábado, 23 de janeiro de 2010

I.

A filosofia já foi considerada, no passado, o aprendizado da morte. Desde Sócrates, filósofo era aquele que sabia morrer. Função da filosofia seria preparar-nos para uma “boa morte”, e o termo grego genérico, no caso, era mesmo “eutanásia”. Supunha-se que aquele que sabe morrer aprendeu a viver, e assim a vida e a morte se iluminavam reciprocamente. No século XIX, época dos grandes sistemas, a morte saiu da temática central dos textos filosóficos, e foi talvez Kierkegaard quem inaugurou uma nova perspectiva, chamada depois “existencial”, descrevendo a morte como algo que para cada um de nós é certo, mas cuja hora é bem incerta. Os filósofos da existência, no século XX, aprenderam esse dado sob a fórmula mais genérica da experiência da “finitude humana”. Para Heidegger, um dos “existenciais” que caracterizariam o homem é o “ser-para-a-morte”: “Zum-Tode-sein”. Isto significaria que entre as diversas possibilidades do homem há uma que representa “a possibilidade da impossibilidade”, ou seja, quando esta ocorre, todas as demais possibilidades ficam excluídas.


Não é preciso ser nenhum filósofo para constatar, hoje em dia, que a gente não morre mais como antigamente. A hospitalização, as unidades de terapia intensiva e a invenção dos transplantes caracterizam três grandes tendências do século XX que alteraram totalmente o horizonte da morte e do morrer. A perspectiva de ir terminar seus dias num leito de hospital, preso a uma série de tubos e aparelhos, e como um eventual doador de órgãos a serem retirados ainda vivos quando o paciente estiver legalmente morto (aliás, numa definição de morte legal para fins precípuos de transplantes), não existia antes da última grande guerra mundial.

Técnicas extremamente artificiais que nos pareciam adequadas quando aplicadas a um jovem e forte soldado ferido gravemente no Vietnã e que só precisava de algumas horas para chegar ao Hospital de Frankfurt, de onde teria grandes perspectivas de sair capacitado a uma reintegração à vida normal dos cidadãos, chocaram terrivelmente os brasileiros quando aplicadas ao presidente eleito Tancredo Neves, com um quadro clínico totalmente diferente. Técnicas e procedimentos que dão aos profissionais da saúde novos poderes de retardar ao máximo a hora da morte implicam obviamente um acréscimo de responsabilidade na grave questão de definir afinal quando então seria preciso desistir, aceitando o irreversível. A tentativa de definir a “ortotanásia” como um “justo meio termo” entre a eutanásia (apressada), e a distanásia (obstinada), parece ser antes um sintoma do problema do que uma verdadeira e definitiva solução. Aliás, para quem aceitar um pluralismo de definições da morte, entendida de várias maneiras como “um processo”, parece que o conceito genérico da “irreversibilidade” continuará como o mais proveitoso ou operacional nos diversos casos. Nem todos preferem, é claro, a definição enunciada por H. Tristam Engelhardt, Jr. (Fundamentos da Bioética, 1998, p. 296) da pessoa que se consideraria morta “quando seu corpo começasse a cheirar mal sob o sol do verão do Texas”. E se os mais obstinados na recusa da hora da morte chegam a pedir para serem congelados, há um dado que mesmo eles deveriam levar em conta: ninguém, a rigor, pode dar garantia absoluta de que daqui a 50 ou 100 anos, quando a medicina tiver descoberto a cura da doença que os condenou, haverá lugar no planeta para (o retorno de) mais um indivíduo, na hipótese da superpopulação. De modo que o projeto da “conservação criônica” lembra a muitos filósofos o conceito da “má infinitude”, que lança para o puramente quantitativo algo que teria de ser resolvido em termos qualitativos.





II.

Entre os filósofos que dão atenção às questões da Bioética, há dois nomes que muito se destacam no tratamento dos assuntos relacionados com a morte: Robert Veatch e Peter Singer. Por ser o primeiro bastante conhecido entre nós, especialmente pelo Prof. Carlos Fernando Francesconi, proponho-me a trazer agora para a discussão algumas das idéias do eticista australiano (de origem austríaca e judaica) Peter Singer, que inclusive publicou em 1994 um livro que, traduzido aos espanhol há cinco anos, intitulou-se “Repensar la vida y la muerte.El derrumbe de nuestra ética tradicional” (Paidós, Barcelona, Buenos Aires, México).
Peter Singer faz jus à fama de pensador polêmico. Introduz as questões com exemplos de casos limites, como o de 1993, da assaltante drogada e grávida de 17 semanas que, ferida à bala na cabeça e com morte encefálica, foi mantida numa UTI norte-americana por mais de três meses, até a cesariana de um prematuro. Clinicamente morto, mas com o coração batendo graças aos aparelhos, este corpo materno serviu de suporte para a reprodução da vida. A despesa total de mais de 400 mil dólares dá a entender que os procedimentos adotados a fim de chegar a mandar esta criança para casa não valem para a prática usual, mas somente para uma experiência de ponta. Um corpo rosado e quente, ao qual se aplicam os cuidados da higiene, da ginástica e da fisioterapia, um corpo por onde circulam os diversos fluidos vitais, um corpo que está (ativa ou passivamente, - como definir?) gerando um novo ser humano, é uma pessoa viva, que deverá “morrer” quando o bebê nascer, ou apenas uma incubadora que será simplesmente “desligada” sem nenhum problema ético quando se alcançar o resultado desejado? Temos aqui um caso de respeito à vida que é sagrada, ou uma experiência talvez perversa com alto grau de manipulação desrespeitosa? Quem vai decidir? Num caso semelhante, ocorrido em 1992 na Alemanha, o assessor jurídico da clínica de Erlangen tentou decidir a questão nos seguintes termos: “O respeito por um corpo morto não é em absoluto uma exigência ética, enquanto que o direito à vida sim o é.” (Singer, op. cit., p. 27) - Mas houve quem mencionasse o Dr. J. Mengele como o predecessor de tais experiências.

Numa situação bem diferente, é verdade, ninguém comparou ao Dr. Mengele o pioneiro dos transplantes de coração, Dr. Christiaan Barnard, embora seu primeiro doador ainda não estivesse enquadrado na definição legal da morte encefálica, uma vez que em 1967 tal lei ainda nem existia. Podemos imaginar que a decisão de Barnard tenha exigido dele uma redefinição da questão ética, e que ele tenha agido como pioneiro também na ética, talvez até conhecendo a tese do Papa Pio XII, que em 1957 já definira que a definição da hora da morte é assunto para os médicos (“sobretudo o anestesista”), e não para os teólogos. O capelão do Hospital de Erlangen podia considerar, no segundo caso mencionado, que, “para ele”, uma mulher estaria morta quando “pálida e rígida”, mas pela jurisprudência alemã ela estava morta mesmo com o coração batendo. Pelas leis da Califórnia, no caso anterior, a mãe estava morta havia três meses, quando o filho chegou a nascer. Assim, nem ousamos dizer que “ela deu à luz”, pois um cadáver nem pode ser chamado propriamente de “ela” ou de “mãe”. Estranho é que as enfermeiras a tratavam como uma enferma em fase terminal, e não como um cadáver! E um jornal de San Francisco noticiava: “Mulher com morte cerebral dá à luz e logo morre.

III.

O problema da definição tradicional da morte é que ela, como muitas outras definições tradicionais, é circular. Morremos quando deixamos de viver, e deixamos de viver quando morremos. À medida que vamos morrendo, nossos diversos órgãos vão parando de funcionar, e na medida que os órgãos vão parando de funcionar, morremos. Mesmo definindo a morte no momento da parada definitiva das funções encefálicas (para assim evitar a circularidade), ficamos com um problema: como definir quando morre um bebê que jamais teve cérebro? Uma definição como a da morte encefálica, proposta pelo Comitê de Harvard e adotada em muitos países, é a alternativa técnica e prática para o problema dos transplantes. Talvez não seja muito mais do que isto, para quem não a reconhece como irreversível. Mas esta redefinição da morte, tal como foi proposta pelo Comitê de Harvard, baseada na perda irreversível do funcionamento do cérebro, criou um consenso entre os médicos, e assim revelou-se uma definição bem sucedida, adotada pela maioria dos países desenvolvidos. Um problema adicional é que o cérebro, além das funções da consciência e da vontade, funções que tanto dignificam o ser humano, também tem funções de regular o funcionamento do resto do corpo, as quais porém podem ser mantidas artificialmente. Ou seja, o cérebro, nesta função, é substituível.

A maioria da população pode até pensar que os bebês que nascem sem cérebro são casos raríssimos, mas conforme Singer ocorre um a cada dois mil partos, de modo que nos Estados Unidos nascem por ano uns trezentos bebês anencefálicos. Mas se a parte superior do cérebro não funciona, a criatura não pode ver, nem ouvir e nem sentir, não pode sofrer nem ter emoções, não pode querer e nem pensar, embora possa respirar e seu coração possa bater, já que isso depende da parte inferior do cérebro. O caso da menina K, relatado por Singer (p. 51), parece ser o mesmo contado em Porto Alegre por Veatch, que participou dele como perito. Nascida anencefálica em Falls Church, Virginia, em outubro de 1992, sobreviveu mais de um ano porque sua mãe insistiu em mantê-la viva, o que era possível, aliás, com a ajuda ocasional de um respirador, que os médicos consideraram exagerado e fútil. A fé desta mãe, de resto solteira e negra, mandava-lhe proteger qualquer forma de vida humana, segundo a ética tradicional da santidade da vida. Para a maioria, provavelmente, a morte é a perda irreversível da capacidade de consciência. Consequentemente, uma criança que jamais atingirá os níveis mínimos de consciência, não precisa sobreviver mais do que aquele tempo necessário para a mãe trabalhar o sentimento desta perda. De um caso semelhante, diz Singer: “o bebê nascera demasiado prematuramente e sofrera uma grave hemorragia cerebral (...), padecia de morte cortical, e não podia ter nenhum futuro. Não havia esperanças e não havia nenhuma razão para continuar com um tratamento, mas os médicos estavam dando um tempo aos pais para que se adaptassem e chorassem a perda antes de tirar o bebê do respirador.”(p. 56)

Colocar o acento da sacralidade da vida no desempenho atual ou potencial das faculdades digamos espirituais, como a autoconsciência, a vontade e a relação interpessoal, centraliza o debate no conceito de “pessoa humana”. Se este conceito eqüivale a uma dignidade que se adquire (analogamente à personalidade jurídica do Império Romano), podemos então até dizer que um bebê merece respeito pela solidariedade dos pais, e que um zigoto biologicamente humano merece este mesmo respeito, mas por uma espécie de “adscrição” que faz com que o consideremos “como se já fosse uma pessoa humana”, - porém a verdade é que ele ainda não o é. Se um feto abortado espontaneamente merecesse o mesmo respeito que uma criança, certamente as igrejas lhe dariam pompas fúnebres, o que não é o caso.

Singer, surpreendentemente, considera que a definição de morte apenas pela parada irreversível das partes superiores do cérebro, embora prática e lógica, não deixa de ser errônea. Lembrando a Rainha Vermelha, de “Alice no País das Maravilhas”, que passava meia hora cada manhã tentando acreditar em coisas impossíveis, diz que seria preciso conseguir o mesmo para aceitar que estejam mortos pacientes com corpo quente, corado e flexível, que respiram e podem continuar respirando mesmo sem aparelhos. Sua sugestão, contudo, é de que não precisaríamos definir tais pacientes ou bebês anencefálicos como mortos para autorizar que sejam doadores, desde que o diagnóstico não deixasse lugar a dúvidas. Em termos brasileiros isto eqüivaleria a dizer que a morte encefálica só é morte para fins de transplantes, mas que de resto não é morte. Como, porém, a sugestão de Singer não foi adotada, os anencefálicos não podem morrer, para fins de transplantes, e portanto não servem como doadores. Só morrem quando começam a deteriorar-se, sendo então desligados do respirador.

O Parlamento da Dinamarca criou em 1987 um Conselho de Ética, para assessorar o Ministério da Saúde. Como não utilizavam o conceito de morte cerebral, o Conselho consultou a população e propôs que o critério da morte continuasse sendo a interrupção total e irreversível da circulação e da respiração, porém admitindo que a parada de todas as funções cerebrais caracterizaria um “processo irreversível de morte” (Singer, p. 63). A partir daí, o paciente não teria mais direito a outros meios artificiais para manter-se vivo, pois o moribundo não tiraria nenhum benefício disto. Porém o Conselho de Ética Dinamarquês recomendou então que se utilizassem aqueles meios artificiais que retardariam a conclusão do processo de morte, por mais 48 horas, para que se pudessem extrair os órgãos, desde que a pessoa não tivesse registrado previamente sua recusa à doação. Tal solução, para Singer, tem o mérito de distinguir claramente três questões: “

1) Quando morre um ser humano?
2) Quando é lícito deixar de intentar manter vivo um ser humano?
3) Quando é lícito extrair órgãos de um ser humano com o fim de transplantá-los a outro ser humano?
Apesar do mérito filosófico dessa proposta, ela não foi aceita, e a Dinamarca acabou alinhando-se, por uma lei de 1990, ao grupo dos países europeus que aceitam a morte cerebral como um critério da morte.

É na Grã-Bretanha então que Singer vai procurar uma solução. Lá existem provavelmente entre 1000 e 1500 pessoas em estado vegetativo permanente (PVS), em hospitais e clínicas. O caso de Tony Bland (1989), pisoteado pela torcida de um jogo de futebol, parece-lhe emblemático. Se na multidão morreram 95 pessoas pisoteadas, Tony Bland não morreu, mas com o pulmão esmagado ficou sem oxigênio, e o córtex se destruiu. O juiz local não permitiu que se pusesse fim à vida de Tony Bland intencionalmente, pela interrupção da alimentação artificial. - Nos Estados Unidos, um caso semelhante, de Nancy Beth Cruzan, tivera como desfecho um epitáfio onde consta: “Nasceu em 20 de julho de 1957. / Morreu em 11 de janeiro de 1983. / Em paz em 26 de dezembro de 1990 (Singer, p. 72) - Ora, a decisão final inglesa, no caso de Tony Bland, levou em conta a qualidade de vida (e não a “santidade” da mesma): sua vida não valia mais a pena; e embora ele fosse inocente, era lícito provocar-lhe a morte, “negando-lhe a satisfação das necessidades vitais básicas, por razões humanitárias”. - O famoso caso de Karen Quinlan buscara apoiar-se, com a ajuda da igreja católica, no conceito de recursos “ordinários e extraordinários”, mas para Singer isso apenas disfarça a questão da intenção de interromper uma vida que já não tem mais nenhum sentido humano. No caso desta moça, aliás, o “recurso extraordinário” resumia-se a um respirador (que não pode ser considerado, a rigor, um tratamento penoso para a paciente). - No caso de Tony Bland, será que os juizes da Câmara dos Lordes teriam sancionado uma eutanásia não-voluntária? Se a lei britânica permite que um paciente deixe de ser alimentado artificialmente, a questão ética não está no fato de ser uma omissão ao invés de uma ação, mas se baseia na idéia de que a vida desses pacientes em estado vegetativo persistente não lhes traz mais nenhum benefício. Mesmo preservadas, são existências apenas biológicas, não são mais vida humana. (Aliás, se preferíssemos utilizar uma linguagem mais kierkegaardiana, bastaria inverter os substantivos: “mantêm apenas a vida biológica, sem um sentido, e não se realizam mais numa existência humana”.) - Mas, provocador como é, Peter Singer pergunta então: “Se desconectar um tubo pode eventualmente ser legal, por que não o seria aplicar uma injeção letal?” Ele pergunta: “Que base ética tem tal distinção?” (p. 87) E conclui esta parte do livro considerando madura a necessidade de uma nova ética.

Tomando o caso do aborto, Singer critica o grupo “pro choise”, pois ele crê que às vezes uma boa política pode ser também má filosofia: se é verdade que o feto tem os mesmos direitos do bebê, então não cabe à mãe escolher, assim como a escravidão não pode depender de uma escolha do negreiro... (p. 93) Mas Peter Singer é mais do que um filósofo provocante. Para muita gente, ele é irritante, e talvez por uma razão principal: não sendo um idealista utópico a traçar ideais impossíveis de realizar na prática, embora absolutos na exigência, não sendo um deontologista partidário de uma ética de intenção, mas posicionando-se antes voltado para uma ética da responsabilidade, para as possibilidades reais e realizáveis, mesmo com recursos finitos, e assumindo assim a dimensão da finitude e a conseqüente necessidade de administrar de maneira sistêmica nossas ações, Singer relaciona todas as coisas, mostra as suas diversas implicações recíprocas, como quando escreve: “Para ser justo eu deveria acrescentar que descrever o movimento anti-abortista como ‘pró vida’ é tão errôneo como definir os defensores do aborto legal como ‘pró escolha’. Há poucos vegetarianos no movimento pró vida. A maioria dos seus membros traçam uma linha marcada entre os seres humanos, cujas vidas desejam proteger, e os animais não humanos, cujo assassinato defendem cada vez que comem. Por essa razão, o movimento deveria chamar-se ‘pró vida humana’. Mas isso não seria totalmente correto, porque o movimento não é contra os assassinatos nas guerras ou a pena de morte. Portanto, a definição que mais se ajusta é ‘pró vida humana inocente’. E nem sequer esta é muito exata, porque o movimento não faz nada para salvar as crianças da morte por desnutrição ou enfermidades evitáveis nas regiões mais pobres do mundo, embora esta seja - comparada com lutar contra o aborto - uma forma muito mais segura e eficaz de salvar vidas de seres humanos inocentes.”(p. 94)

Embora nossa apresentação das idéias de Singer deva concentrar-se mais nas relacionadas com a morte, não resistimos a tentação de mostrar como ele, ao repensar a vida, em seus inícios, busca argumentos em favor de uma posição que começa a respeitar o embrião depois de duas semanas. Ele o faz com um curioso experimento mental (p. 101), o da possibilidade de subdivisão depois da fecundação. Se queremos tratar o conjunto de células como se fossem indivíduos, por que então não utilizar nomes próprios, para personalizar? Escreve ele: “Se considerarmos o embrião como um indivíduo desde a concepção - chamemo-lhe Marion -então, o que sucede a Marion se o embrião se divide? Os gêmeos recém formados são Marion e um novo gêmeo, por exemplo, Ruth? Ou se trata de dois novos gêmeos, por exemplo, Ruth e Esther? Ambas as respostas suscitam paradoxos. Se Marion ainda existe, qual dos dois gêmeos é ela? Não há nenhuma base para dizer que um deles esteja mais vinculado à Marion original do que o outro. Mas se nenhum dos dois novos gêmeos é Marion, o que terá sucedido a ela? Terá desaparecido? Deveríamos então lamentar a perda de um ser humano, como eu lamentaria a perda de uma de minhas filhas, mesmo que ela fosse substituída por outras duas?” Por isso, Singer conclui que só deveríamos falar de um indivíduo humano uns 14 dias após a concepção, quando o novo ser já não se divide mais, e ao menos neste sentido é realmente um indivíduo. - Isto, sem falar de que a expressão “o momento da concepção” hoje se revela extremamente vaga, a ponto de os cientistas alemães congelarem óvulos com o espermatozoide já dentro, mas ainda não fundidos: a concepção, só ela, dura umas 24 horas.

Um outro problema atual foi aludido pelo especialista em bioética alemão Hans-Martin Sass: Se a interrupção da vida cerebral é critério de morte, haveria algo inversamente proporcional no início, e a vida humana começaria com os primeiros sinais da atividade cerebral? De qualquer maneira, Singer acha que o critério da morte cerebral constitui “uma decisão ética, não uma decisão científica” (p. 110). Quanto a isso Singer pode estar certo, pois a ética trabalha com os dados existentes disponíveis, caso contrário teríamos de aceitar gerações inteiras sem ética, enquanto a ciência demorasse a fazer suas descobertas, o que não seria ético. Pois todos os homens de todas as épocas devem estar igualmente próximos da ética.

Infelizmente, não cabe nesta comunicação introdutória a interessantíssima questão da necessidade de uma reclassificação zoológica do Homo sapiens, que levasse em conta nosso estreito parentesco com os chimpanzés, conforme as propostas de Richard Dawkins e Jared Diamond e que talvez nos definissem como “o terceiro chimpanzé”. Mas se pertencemos à mesma família e ao mesmo gênero dos chimpanzés e dos gorilas, o que isso altera em termos de definição da morte do homo sapiens? E o que muda em relação à problemática da “pessoa”? Existem pessoas não-humanas, em nosso planeta? Singer radicaliza sua posição perguntando: “Por que deveríamos considerar sacrossanta a vida de uma criança anencefálica e acreditar-nos com liberdade para matar gibões para utilizar seus órgãos?” (p. 182

Outra questão que irrita, e que é uma questão filosófica, mas que permanece aberta à discussão na obra de Singer, é a de saber se ações e omissões se eqüivalem. Nosso autor não fecha a questão. Até modula e modera suas respostas. Ao mesmo tempo em que libera o médico de escrúpulos nos casos de terem de escolher entre duas vidas, tal posição tem o seu preço ao aumentar a responsabilidade: “Num mundo com meios de transportes e de comunicação modernos, no qual algumas pessoas vivem à beira da inanição enquanto outras possuem enormes fortunas, sempre há algo que possamos fazer em alguma parte, para manter com vida uma pessoa enferma ou mal-nutrida. Que todos os que vivemos em países ricos, com rendas muito superiores às necessárias para satisfazer nossas necessidades, deveríamos estar fazendo muito mais para ajudar as pessoas de países mais pobres a ter um nível de vida que lhes permita enfrentar suas necessidades, é uma questão com a qual a maioria das pessoas sérias estará de acordo; mas o aspecto preocupante desta idéia de responsabilidade é que não parece haver um limite sobre o quanto devemos fazer. Se somos tão responsáveis pelo que deixamos de fazer quanto pelo que fazemos, estará errado comprar roupa da moda ou cear num restaurante caro quando este dinheiro poderia haver salvo a vida de um desconhecido que morre por não ter o suficiente para comer? O não doar dinheiro a organizações de ajuda é realmente uma forma de assassinato ou algo tão errado quanto matar?(p. 192s.)

IV.

Está na hora de nos aproximarmos do final desta apresentação. Convém então, resumidamente, esboçar as conclusões do autor que escolhemos, e que aparecem na terceira parte do livro. Para sermos brutalmente rápidos, há que enunciar dois pressupostos que para ele sustentam a ética tradicional. “O primeiro desses supostos é que somos responsáveis pelo que fazemos intencionalmente, mas de certo modo não somos responsáveis pelo que não impedimos deliberadamente. O segundo é que as vidas de todos os membros de nossa espécie, e somente deles, merecem maior proteção que a vida de qualquer outro ser.” (p. 215) Sem esses dois pressupostos a ética que Singer chama tradicional não pode sobreviver. - Por fim, Peter Singer enumera cinco mandamentos daquela que chama “ética tradicional” e a cada um vai antepondo um novo mandamento, na nova perspectiva. Diferentemente do livro, apresentaremos os cinco mandamentos tradicionais e depois os cinco mandamentos reformados.

1o. antigo mandamento: Considerar que toda vida humana tem o mesmo valor;
2o. antigo mandamento: Nunca pôr fim intencionalmente a uma vida humana inocente;

3o. antigo mandamento: Nunca tires tua própria vida e tenta evitar que outros tirem as suas;

4o. antigo mandamento: Crescei e multiplicai-vos;

5o. antigo mandamento: Considera qualquer vida humana sempre mais valiosa que qualquer vida não humana.



1o. novo mandamento: Reconhecer que o valor da vida humana varia;
2o. novo mandamento: Responsabiliza-te pelas conseqüências de tuas decisões;

3o. novo mandamento: Respeita o desejo de viver e de morrer de uma pessoa;

4o. novo mandamento: Trazer ao mundo apenas crianças que sejam desejadas;

5o. novo mandamento: Não discriminar em razão da espécie.

Dissemos que Peter Singer é um filósofo. E ele o é inclusive ao buscar coerência em sua proposta e ao se recusar a entender a ética como um terreno de opiniões arbitrárias ou mesmo traçado apenas pelas emoções. Considera que essa seria uma visão conservadora da ética. Não é essa a dele, que se baseia em conceitos racionais, argumentos e discussões. Pois se alguém nos disser: “Muito bem, esta é a tua opinião, mas eu tenho a minha”, isto não deve jamais representar o final da discussão. Singer sabe também que a temática da vida e da morte é somente uma parte da ética, embora muito importante.
Poderíamos então encerrar esta palestra abrindo e alargando os horizontes ainda mais do que o faz este autor, e para isso seria importante recordar que a ética não se reduz, de maneira alguma, a uma simples lista objetiva de coisas permitidas ou proibidas. A ética é muito mais do que algum código. A ética não se resume a tábuas das leis, mas supõe a educação moral das pessoas, pelo desenvolvimento de sua sensibilidade e de seus fundamentos argumentativos, além da educação de seus hábitos, tão bem estudados na perspectiva da ética das virtudes, que é defendida nos dias de hoje por médicos e filósofos, como por exemplo pela figura ímpar do Dr. Edmund Pellegrino.





“Um dia, pronto, me acabo / e seja o que Deus quiser /

Morrer, que me importa, o diabo / é deixar de viver.

(Mário Quintana)



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Morte e Morrer - Materiais