terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Blog do IHU
Fev|19
Poesia e linguagem em Giorgio Agamben
Por André Dick

Desde o lançamento de Homo sacer, o filósofo italiano Giorgio Agamben, nascido em Roma, em 1942, vem recebendo atenção no Brasil. Por meio de Profanações (Boitempo Editorial) e Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental (Ed. UFMG), continua-se a sequência de lançamentos de títulos desse filósofo, a exemplo de A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade, Infância e história: a destruição da experiência e a origem da história (ambos lançados pela UFMG), Estado de exceção e O que resta de Auschwitz (lançados pela Boitempo). Fixemo-nos, no entanto, nos livros que Agamben dedica mais a fazer uma interseção entre literatura e filosofia, ou seja, Profanações, Estâncias e Infância e história, o que fez Derrida entre o fim dos anos 1960 e meados dos 70. Nesse sentido, Agamben, como Derrida, é um autor limítrofe. Todos esses livros são múltiplos, mostrando uma obra em plena realização e não se delimitam ao campo em que Agamben está começando a ser mais inserido: no do direito, em razão, sobretudo, dos admiráveis Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I e de Estado de exceção, este continuando uma discussão já iniciada por Derrida em Força de lei, influenciado por Walter Benjamin. Ou seja, a procura, aqui, é pela ligação que Agamben, muito particularmente, faz da filosofia com a literatura – o que não pode ser totalizado, claro, com este breve texto.
Em Infância e história, Agamben comenta sobre uma possível destruição da experiência na vida moderna. No entanto, permite-se pensar que não há destruição da experiência para haver o inexperiancível, e sim outro tipo de experiência, talvez mais linguística ou talvez mais profana. A destruição não seria “morada do homem”, mas a sua saída. Por outro lado, pode-se pensar que a experiência de Baudelaire, por exemplo, é existencial e empírica, à medida que é linguística. Agamben recupera a ideia de que o sujeito da experiência era o “senso comum”, presente em cada indivíduo, e o sujeito da ciência é o “nous”, ou o intelecto agente, que é separado da experiência ‘impassível’ e ‘divina’”. Ou seja, “inteligência (nous) e alma (psyché) não são, de fato, para o pensamento antigo [...], a mesma coisa, e o intelecto não é, como nós estamos acostumados a pensar, uma ‘faculdade’ de alma: ele não lhe pertence de modo algum, mas ‘separado, impermisto, impassível’, segundo a célebre fórmula aristotélica, comunica-se com ela para realizar o conhecimento”. Em busca da certeza, nos diz Agamben, a ciência moderna abole tal separação e “faz da experiência o lugar [...] do conhecimento”. Agamben oferece como solução que o velho sujeito da experiência se duplicou, exemplificando Dom Quixote como velho sujeito do conhecimento e Sancho Pança como sujeito da experiência.

Sujeito e linguagem

Com isso, o filósofo italiano deseja afirmar que “é na linguagem e através da linguagem que o homem se constitui como sujeito”. Reavaliando Kant – um dos filósofos a que recorre –, Agamben escreve que o “transcendental não pode ser o subjetivo: a menos que o transcendental signifique simplesmente ‘linguístico’”. Daí ele procurar elementos que possam explicar que o sagrado está ligado ao profano, ou seja, o artista visto como uma espécie de representante da humanidade é uma figura do passado, e a linguagem de cada um pertence à comunidade com quem convive, observando que a infância instaura na linguagem a cisão entre língua e discurso, entre o semiótico e o semântico, entre o sistema de signos e o discurso. Isto significa que o sujeito da linguagem é fundamento da experiência e do conhecimento, e a origem transcendental da linguagem se localiza, portanto, na infância do homem, a pura língua do discurso humano. A ideia de uma infância como uma “substância psíquica” pré-subjetiva revela-se um mito, como aquela de um sujeito pré-linguístico. Isso porque, na visão de Agamben, infância e linguagem estão intrinsecamente ligadas, cada uma remete uma à outra em um círculo no qual a infância é a origem da linguagem e a linguagem a origem da infância, isto é, a infância em questão não assinala apenas um período, mas coexiste originalmente com a linguagem. A infância seria o inefável, a transcendência, o que ocorre nessa passagem do signo ao discurso.
Nesse sentido, percebe-se que sua interpretação sobre Leopardi e de autores gregos (em A linguagem e a morte), Baudelaire, Dante e Cavalcanti (em Estâncias) e da poesia moderna (em Infância e história), mostra um autor extremamente plural e voltado para o sentido da ética literária como um posicionamento poético, o que ele vai explorar em Homo sacer. Agamben, nesse sentido, é o oposto do Platão de A república, preocupado com a sanidade das pessoas em detrimento dos artistas e, sobretudo, dos poetas, sendo possível perceber que hoje a poesia é também uma espécie de homo sacer, que deve ser morto sem piedade em praça pública. Agamben, no entanto, prova que a perseguição é nefasta: não se pode, sobretudo, perseguir a linguagem, inerente ao ser humano. Ele é uma prova cabal de que a linguística, cada vez mais dominada por elementos afastados do poético, guarda o caminho para que a literatura também se manifeste por uma ética do discurso. Mas não se trata, segundo Agamben, de fazer com que os poetas passem a fazer obras de filologia e os filólogos a escreverem poesia, mas de que haja uma complementariedade.

Profanações

Em Profanações, com textos curtos, alguns quase em forma de fragmentos e de aforismos – no melhor estilo dos textos de Schlegel e Novalis, do romantismo de Iena, mas como uma visão menos ideológica, não percebendo o artista como salvador da humanidade –, Agamben continua a linha de Walter Benjamin e Michel Foucault ao propor a recuperação de uma modernidade situada na saturação de uma certa paisagem romântica. Agamben convida a profanar o sagrado, analisando a relação entre religião e capitalismo. Para ele, o profano é o que é restituído ao mundo dos homens, ao uso comum. Agamben observa que religio não deriva de religare (o que liga e une o humano e o divino), mas de “relegare”, indicando a “atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o “reler”) perante as formas – e as fórmulas – que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano”. Desse modo, “religio” não é o que une homens e deuses, “mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos”, havendo uma ligação entre as esferas do sagrado e do jogo, trazendo à cena o pensamento infantil. O jogo traz algo de sagrado, mas não sai da esfera do profano, o que remete à ligação e a constituição do homem na infância – na discussão proposta em Infância e história. Agamben avalia, baseado em Benjamin, que o capitalismo não representa apenas uma “secularização da fé protestante”, mas ele mesmo é um “fenômeno religioso, que se desenvolve de modo parasitário a partir do cristianismo”. No lugar da religião, que havia uma passagem do sagrado para o profano e do profano para o sagrado, o capitalismo institui o vazio do consumo, realizando a “pura forma da separação, sem mais nada a separar”: a religião capitalista “está voltada para a criação de algo Improfanável”. Ou seja, ela almeja o consumo absoluto, e, perdendo-se no vazio, faz com que o ser humano não consiga profanar esse mesmo consumo, e não se separe da ideia de que esse consumo é um fetiche.

Marx e Baudelaire

A avaliação que Agamben faz da religião capitalista guarda correspondência direta com a seção “No mundo de Odradek: a obra de arte frente à mercadoria”, de Estâncias, em que é traçado uma ponte entre Marx e Baudelaire, com seu fetiche pela mercadoria.
Para Agamben, a grandeza de Baudelaire foi ele transformar em mercadoria e em fetiche a própria obra de arte. A partir da ideia de que a poesia não tem outro fim senão ela mesma, Baudelaire imprime à obra de arte o valor de troca que possui a mercadoria. Desse modo, ele impôs à obra um caráter de mercadoria absoluta, cujo valor seria a inutilidade, ou seja, o Improfanável. A mercadorização absoluta da obra de arte.
A lição que Baudelaire deixou à poesia moderna “é que o único modo em superar a mercadoria consistia em levar ao extremo suas contradições, a ponto de ela acabar abolida enquanto mercadoria, com o objetivo de devolver o objeto à sua verdade”. A partir daí, ele avalia que como o sacrifício “restitui ao mundo sagrado o que o uso servir degradou e tornou profano, assim também, através da transfiguração poética, o objeto é arrancado tanto da fruição quanto da acumulação, e restituído ao seu estatuto original”. Esse estatuto serve como a própria descoberta da linguagem. O equívoco de Agamben parece ser de que a condição para esta tarefa sacrifical é o artista levar às últimas consequências o “princípio da perda e do desapossamento de si”. Agamben, a partir daí, incursiona constantemente na impessoalidade de fundo romântico, quando afirma: “Da mesma maneira que a obra de arte deve destruir e alienar a si própria para se tornar uma mercadoria absoluta, também o artista-dandy deve transformar-se em cadáver vivo, tendendo constantemente para um outro, uma criatura essencialmente não-humana e anti-humana”. Isto significa que o filósofo toma o caminho da impessoalidade no sentido do sublime, o que é sempre um risco, quando afirma que a poesia moderna “sinaliza para essa região inquietante, na qual já não existem nem homens nem deuses, e onde, como um ídolo primitivo, só se eleva incompreensivelmente além de si mesma uma presença que é, ao mesmo tempo, sagrada e miserável, fascinante e tremenda, uma presença que carrega consigo, contemporaneamente, a fixa materialidade do corpo morto e a fantasmática inapreensibilidade do ser vivo”. De qualquer modo, o que parece desumano ainda é linguístico e profano. Daí, neste caso, Agamben se contradizer, quando afirmar que há uma destruição da experiência na poesia moderna. A experiência, como vemos em Infância e história, continua sendo a descoberta constante da linguagem.

O panorama da melancolia

Em Estâncias, além disso, Agamben tenta desenhar – no que remete novamente a Walter Benjamin, em sua Origem do drama barroco alemão – novamente o panorama da melancolia. Para isso, parte de um clássico texto de Freud, “Luto e melancolia”. Agamben realiza essa recuperação do conceito de melancolia – sobretudo, sua concepção de sentimento condenatório, pela religião, que a via como a acídia, o enfraquecimento da alma e uma fuga ao divino – como que para estabelecer um diálogo com o conceito de “fantasma”, na análise que faz, sobretudo, da Vita nova de Dante. Nesse misto entre poesia e prosa, o poeta esquece que nunca possui Beatriz – mas lamenta sua perda. Essa perda do “fantasma” que nunca possuiu indica uma melancolia particular, uma imagem congelada remete aos textos de Agamben sobre a fotografia e, sobretudo, ao texto “O ser especial”, de Profanações, em que retoma a ideia, provinda de Dante e de Cavalcanti, de que o amor é como um “acidente em substância” – imagem, aliás, de Vita nova. A imagem – ou o fantasma da melancolia – “é gerada a cada instante de acordo com o movimento ou a presença de quem a contempla”. Para o filósofo italiano, “Entre a percepção da imagem e o reconhecer-se nela há um intervalo que os poetas medievais denominavam amor”. Ao se prolongar o intervalo “entre a percepção e o reconhecimento, a imagem é interiorizada como fantasma, e o amor recai na psicologia”. O “fantasma” remete à melancolia, que, por sua vez, indica a voz da morte, negativa, de A linguagem e a morte.



O fantasma da linguagem

Diante desse fantasma, não há um contato com a corporeidade, mas com a imagem, uma “nova pessoa”, “na qual se abolem os confins entre subjetivo e objetivo, corpóreo e incorpóreo, o desejo e seu objeto”. Com esta fantasia, surge o “espírito fantástico” A noção de fantasia, sob esse aspecto, é também lembrada num momento de Infância e história – indicando o inexperenciável. O que se destaca em Agamben é sua predileção por uma certa infância da linguagem, ideia extraída não só dos românticos e dos seus sucessores – Benjamin afirmava que o Adão havia sido o primeiro filósofo, e há na sua figura uma representação dessa infância a que Agamben se refere –, que coloca a vida como um jogo entre rito e linguagem. No último texto de Profanações, em que ganha relevo essa visualização benjaminiana, a profanação é vista como uma colocação dessa linguagem em plano comum. Não deixa de ser uma obsessão de Agamben, pois, em Infância e história, ele já recorria a essa infância da linguagem, mesmo no homem adulto, e em A linguagem e a morte, em que a voz é a representação negativa da morte, baseado numa leitura de Heidegger e Hegel. Mas, se para Heidegger a metafísica não acaba – como propôs seu continuador direto Derrida –, em Agamben ela se confunde à própria linguagem. É um tanto paradoxal que o mesmo autor que propõe um autor mais ligado à construção da linguagem, em Infância e história, fale, em Profanações, da figura do Gênio, que traria aquela impessoalidade apregoada por Schlegel e Novalis, entre outros românticos, tributária à concepção do sublime. No entanto, não é essa a ideia de Foucault, em que Agamben se baseia para produzir o texto “O autor do gesto”. O eu impessoal de Foucault esconde uma intertextualidade, na qual o próprio Agamben se insere. Ora, Agamben não é um gênio, e seus textos são tributários da própria tradição que ele quer levar adiante. Do mesmo modo, a ideia de “infância da linguagem”, embora poética, nunca chega a se concretizar, pois a modernidade é o período em que mais transparece a experiência negativa do autor, aquela que Agamben estuda como “voz” da morte em A linguagem e a morte. Logo, a experiência moderna não é impessoal como a romântica; pelo contrário: o panorama em que está inserida mostra a superação dessa ideia. O discurso de Agamben se situa, afinal, como observado, num ponto que navega entre a infância e o que resta dela no universo adulto. Para ele, a filosofia é um jogo de armar, explorando como Benjamin, o universo infantil. Nesse sentido, Agamben é um filósofo da infância, como se apresentou Benjamin em alguns de seus textos, a exemplo de “Livros infantis antigos e esquecidos”, “História cultural do brinquedo” e “Brinquedo e brincadeira. Observações sobre uma obra monumental”, os quais o italiano explora e complementa. A infância, para o filósofo, é o início da profanação da linguagem, ou seja, de sua descoberta, principalmente poética. Afinal, diz Agamben, “a linguagem é nossa voz, a nossa linguagem. Como agora falas, isto é a ética”. E a infância, sem dúvida, carrega o sentido de toda uma existência.

Postado em Invenção | 2 comentários »

Nenhum comentário: