domingo, 30 de agosto de 2009

A Importância da Ética

Antigamente, moral e ética eram transmitidas às novas gerações pelas classes dominantes, pela aristocracia, pelos intelectuais, escritores e artistas. Era uma época em que os nobres eram nobres, exemplos a ser seguidos por todos. Hoje isso mudou. Nossas lideranças políticas, acadêmicas e empresariais não mais se preocupam em transmitir valores morais
às futuras gerações. Não existe mais o noblesse oblige, a obrigação dos nobres, como antigamente. Poetas até enaltecem os nossos "heróis sem caráter".

Hoje, quem quiser adquirir valores morais e éticos neste mundo "moderno" terá de aprender as regras sozinho. Portanto, para não perder mais tempo, vamos começar com a primeira lição.

Vou mostrar a importância de criar um código de ética com um exemplo real. Vou romancear os personagens para os proteger, mas a história é verdadeira.

Um amigo de infância, o Zeca, casou-se com a garota mais linda de nossa turma. Ela tinha uma irmã mais nova e mais bonita de 16 anos. Nosso comentário era que ele estava casando com a irmã errada, mas estávamos todos morrendo de inveja.

Após dois anos de casado, o Zeca acabou transando com a linda cunhada e foi prontamente descoberto pela esposa. Só falamos disso por seis meses. Ele se desculpou dizendo: "Não sei o que passou pela minha cabeça, ela simplesmente se entregou". Fato mais comum do que se imagina, fruto da rivalidade entre belas irmãs.

Muitos anos depois, cada vez que encontrávamos o Zeca tentávamos disfarçar nosso sorriso malicioso. Mesmo vinte anos se passando, toda vez que eu o encontro, a primeira imagem que me vem à mente é: "Lá vem o Zeca, aquele que transou com a cunhada".

Isso é totalmente injusto de minha parte, afinal seu crime não durou mais que meia hora, e ele nunca voltou a repeti-lo. Já sofreu e pagou seu pecado, e mesmo assim, vinte anos depois, nós ainda o estávamos condenando. Pelas leis brasileiras, ele já teria cumprido pena e seria perdoado.

Por isso as gerações mais velhas criam uma moral e uma ética, uma religião, uma filosofia de vida transmitida às novas gerações para que elas não façam besteiras que possam marcá-las para o resto da vida. Transgredir a moral e a ética de sua comunidade traz penas bem mais severas que transgredir as leis de seu país.

Ter uma religião e não seguir os preceitos que ela advoga, algo que ocorre com freqüência, é o pior dos dois mundos: aí você não procura uma ética melhor que o satisfaça nem segue a ética determinada por sua religião.

Na semana passada ligou um amigo de meu filho e anotei o recado:


– O Alfredo, filho do Zeca, te ligou – avisei no almoço.


– O Zeca, aquele que papou a cunhada? – disse meu filho com um sorriso malicioso.


Acho que ninguém de nossa turma tem hoje inveja do Zeca. Ele não somente pagou o preço, mas esse preço vai ser pago agora por seus filhos, netos e talvez bisnetos. Posso até imaginar daqui a trinta anos um comentário desses:


– Não é o neto do Zeca, aquele que foi pego na cama com a cunhada?


Os filhos, netos e bisnetos de nossos políticos, homens públicos, líderes e artistas que romperam com a ética terão de conviver com o eterno tititi sobre seus pais e nunca saberão dos comentários ditos pelas costas.


Se você tem uma religião e não a pratica, se você odeia as pregações de moralidade que seus pais lhe impõem, isso não o exime de procurar um sistema de referência melhor para sua vida, seja uma outra religião, seja uma conduta filosófica, seja um simples livro de auto-ajuda.


As conseqüências podem ser muito mais severas que as leis impostas pelo Estado, como descobriu meu querido amigo Zeca, aquele que transou com a cunhada.

Stephen Kanitz é administrador (www.kanitz.com.br)


Artigo Publicado na Revista Veja, edição 1733, ano 35, nº1, 9 de Janeiro de 2002.

Repensando a vida e a morte do ponto de vista filosófico

I.

A filosofia já foi considerada, no passado, o aprendizado da morte. Desde Sócrates, filósofo era aquele que sabia morrer. Função da filosofia seria preparar-nos para uma “boa morte”, e o termo grego genérico, no caso, era mesmo “eutanásia”. Supunha-se que aquele que sabe morrer aprendeu a viver, e assim a vida e a morte se iluminavam reciprocamente. No século XIX, época dos grandes sistemas, a morte saiu da temática central dos textos filosóficos, e foi talvez Kierkegaard quem inaugurou uma nova perspectiva, chamada depois “existencial”, descrevendo a morte como algo que para cada um de nós é certo, mas cuja hora é bem incerta. Os filósofos da existência, no século XX, aprenderam esse dado sob a fórmula mais genérica da experiência da “finitude humana”. Para Heidegger, um dos “existenciais” que caracterizariam o homem é o “ser-para-a-morte”: “Zum-Tode-sein”. Isto significaria que entre as diversas possibilidades do homem há uma que representa “a possibilidade da impossibilidade”, ou seja, quando esta ocorre, todas as demais possibilidades ficam excluídas.

Não é preciso ser nenhum filósofo para constatar, hoje em dia, que a gente não morre mais como antigamente. A hospitalização, as unidades de terapia intensiva e a invenção dos transplantes caracterizam três grandes tendências do século XX que alteraram totalmente o horizonte da morte e do morrer. A perspectiva de ir terminar seus dias num leito de hospital, preso a uma série de tubos e aparelhos, e como um eventual doador de órgãos a serem retirados ainda vivos quando o paciente estiver legalmente morto (aliás, numa definição de morte legal para fins precípuos de transplantes), não existia antes da última grande guerra mundial.

Técnicas extremamente artificiais que nos pareciam adequadas quando aplicadas a um jovem e forte soldado ferido gravemente no Vietnã e que só precisava de algumas horas para chegar ao Hospital de Frankfurt, de onde teria grandes perspectivas de sair capacitado a uma reintegração à vida normal dos cidadãos, chocaram terrivelmente os brasileiros quando aplicadas ao presidente eleito Tancredo Neves, com um quadro clínico totalmente diferente. Técnicas e procedimentos que dão aos profissionais da saúde novos poderes de retardar ao máximo a hora da morte implicam obviamente um acréscimo de responsabilidade na grave questão de definir afinal quando então seria preciso desistir, aceitando o irreversível. A tentativa de definir a “ortotanásia” como um “justo meio termo” entre a eutanásia (apressada), e a distanásia (obstinada), parece ser antes um sintoma do problema do que uma verdadeira e definitiva solução. Aliás, para quem aceitar um pluralismo de definições da morte, entendida de várias maneiras como “um processo”, parece que o conceito genérico da “irreversibilidade” continuará como o mais proveitoso ou operacional nos diversos casos. Nem todos preferem, é claro, a definição enunciada por H. Tristam Engelhardt, Jr. (Fundamentos da Bioética, 1998, p. 296) da pessoa que se consideraria morta “quando seu corpo começasse a cheirar mal sob o sol do verão do Texas”. E se os mais obstinados na recusa da hora da morte chegam a pedir para serem congelados, há um dado que mesmo eles deveriam levar em conta: ninguém, a rigor, pode dar garantia absoluta de que daqui a 50 ou 100 anos, quando a medicina tiver descoberto a cura da doença que os condenou, haverá lugar no planeta para (o retorno de) mais um indivíduo, na hipótese da superpopulação. De modo que o projeto da “conservação criônica” lembra a muitos filósofos o conceito da “má infinitude”, que lança para o puramente quantitativo algo que teria de ser resolvido em termos qualitativos.


II.

Entre os filósofos que dão atenção às questões da Bioética, há dois nomes que muito se destacam no tratamento dos assuntos relacionados com a morte: Robert Veatch e Peter Singer. Por ser o primeiro bastante conhecido entre nós, especialmente pelo Prof. Carlos Fernando Francesconi, proponho-me a trazer agora para a discussão algumas das idéias do eticista australiano (de origem austríaca e judaica) Peter Singer, que inclusive publicou em 1994 um livro que, traduzido aos espanhol há cinco anos, intitulou-se “Repensar la vida y la muerte.El derrumbe de nuestra ética tradicional” (Paidós, Barcelona, Buenos Aires, México).

Peter Singer faz jus à fama de pensador polêmico. Introduz as questões com exemplos de casos limites, como o de 1993, da assaltante drogada e grávida de 17 semanas que, ferida à bala na cabeça e com morte encefálica, foi mantida numa UTI norte-americana por mais de três meses, até a cesariana de um prematuro. Clinicamente morto, mas com o coração batendo graças aos aparelhos, este corpo materno serviu de suporte para a reprodução da vida. A despesa total de mais de 400 mil dólares dá a entender que os procedimentos adotados a fim de chegar a mandar esta criança para casa não valem para a prática usual, mas somente para uma experiência de ponta. Um corpo rosado e quente, ao qual se aplicam os cuidados da higiene, da ginástica e da fisioterapia, um corpo por onde circulam os diversos fluidos vitais, um corpo que está (ativa ou passivamente, - como definir?) gerando um novo ser humano, é uma pessoa viva, que deverá “morrer” quando o bebê nascer, ou apenas uma incubadora que será simplesmente “desligada” sem nenhum problema ético quando se alcançar o resultado desejado? Temos aqui um caso de respeito à vida que é sagrada, ou uma experiência talvez perversa com alto grau de manipulação desrespeitosa? Quem vai decidir? Num caso semelhante, ocorrido em 1992 na Alemanha, o assessor jurídico da clínica de Erlangen tentou decidir a questão nos seguintes termos: “O respeito por um corpo morto não é em absoluto uma exigência ética, enquanto que o direito à vida sim o é.” (Singer, op. cit., p. 27) - Mas houve quem mencionasse o Dr. J. Mengele como o predecessor de tais experiências.

Numa situação bem diferente, é verdade, ninguém comparou ao Dr. Mengele o pioneiro dos transplantes de coração, Dr. Christiaan Barnard, embora seu primeiro doador ainda não estivesse enquadrado na definição legal da morte encefálica, uma vez que em 1967 tal lei ainda nem existia. Podemos imaginar que a decisão de Barnard tenha exigido dele uma redefinição da questão ética, e que ele tenha agido como pioneiro também na ética, talvez até conhecendo a tese do Papa Pio XII, que em 1957 já definira que a definição da hora da morte é assunto para os médicos (“sobretudo o anestesista”), e não para os teólogos. O capelão do Hospital de Erlangen podia considerar, no segundo caso mencionado, que, “para ele”, uma mulher estaria morta quando “pálida e rígida”, mas pela jurisprudência alemã ela estava morta mesmo com o coração batendo. Pelas leis da Califórnia, no caso anterior, a mãe estava morta havia três meses, quando o filho chegou a nascer. Assim, nem ousamos dizer que “ela deu à luz”, pois um cadáver nem pode ser chamado propriamente de “ela” ou de “mãe”. Estranho é que as enfermeiras a tratavam como uma enferma em fase terminal, e não como um cadáver! E um jornal de San Francisco noticiava: “Mulher com morte cerebral dá à luz e logo morre.

III.

O problema da definição tradicional da morte é que ela, como muitas outras definições tradicionais, é circular. Morremos quando deixamos de viver, e deixamos de viver quando morremos. À medida que vamos morrendo, nossos diversos órgãos vão parando de funcionar, e na medida que os órgãos vão parando de funcionar, morremos. Mesmo definindo a morte no momento da parada definitiva das funções encefálicas (para assim evitar a circularidade), ficamos com um problema: como definir quando morre um bebê que jamais teve cérebro? Uma definição como a da morte encefálica, proposta pelo Comitê de Harvard e adotada em muitos países, é a alternativa técnica e prática para o problema dos transplantes. Talvez não seja muito mais do que isto, para quem não a reconhece como irreversível. Mas esta redefinição da morte, tal como foi proposta pelo Comitê de Harvard, baseada na perda irreversível do funcionamento do cérebro, criou um consenso entre os médicos, e assim revelou-se uma definição bem sucedida, adotada pela maioria dos países desenvolvidos. Um problema adicional é que o cérebro, além das funções da consciência e da vontade, funções que tanto dignificam o ser humano, também tem funções de regular o funcionamento do resto do corpo, as quais porém podem ser mantidas artificialmente. Ou seja, o cérebro, nesta função, é substituível.

A maioria da população pode até pensar que os bebês que nascem sem cérebro são casos raríssimos, mas conforme Singer ocorre um a cada dois mil partos, de modo que nos Estados Unidos nascem por ano uns trezentos bebês anencefálicos. Mas se a parte superior do cérebro não funciona, a criatura não pode ver, nem ouvir e nem sentir, não pode sofrer nem ter emoções, não pode querer e nem pensar, embora possa respirar e seu coração possa bater, já que isso depende da parte inferior do cérebro. O caso da menina K, relatado por Singer (p. 51), parece ser o mesmo contado em Porto Alegre por Veatch, que participou dele como perito. Nascida anencefálica em Falls Church, Virginia, em outubro de 1992, sobreviveu mais de um ano porque sua mãe insistiu em mantê-la viva, o que era possível, aliás, com a ajuda ocasional de um respirador, que os médicos consideraram exagerado e fútil. A fé desta mãe, de resto solteira e negra, mandava-lhe proteger qualquer forma de vida humana, segundo a ética tradicional da santidade da vida. Para a maioria, provavelmente, a morte é a perda irreversível da capacidade de consciência. Consequentemente, uma criança que jamais atingirá os níveis mínimos de consciência, não precisa sobreviver mais do que aquele tempo necessário para a mãe trabalhar o sentimento desta perda. De um caso semelhante, diz Singer: “o bebê nascera demasiado prematuramente e sofrera uma grave hemorragia cerebral (...), padecia de morte cortical, e não podia ter nenhum futuro. Não havia esperanças e não havia nenhuma razão para continuar com um tratamento, mas os médicos estavam dando um tempo aos pais para que se adaptassem e chorassem a perda antes de tirar o bebê do respirador.”(p. 56)

Colocar o acento da sacralidade da vida no desempenho atual ou potencial das faculdades digamos espirituais, como a autoconsciência, a vontade e a relação interpessoal, centraliza o debate no conceito de “pessoa humana”. Se este conceito eqüivale a uma dignidade que se adquire (analogamente à personalidade jurídica do Império Romano), podemos então até dizer que um bebê merece respeito pela solidariedade dos pais, e que um zigoto biologicamente humano merece este mesmo respeito, mas por uma espécie de “adscrição” que faz com que o consideremos “como se já fosse uma pessoa humana”, - porém a verdade é que ele ainda não o é. Se um feto abortado espontaneamente merecesse o mesmo respeito que uma criança, certamente as igrejas lhe dariam pompas fúnebres, o que não é o caso.

Singer, surpreendentemente, considera que a definição de morte apenas pela parada irreversível das partes superiores do cérebro, embora prática e lógica, não deixa de ser errônea. Lembrando a Rainha Vermelha, de “Alice no País das Maravilhas”, que passava meia hora cada manhã tentando acreditar em coisas impossíveis, diz que seria preciso conseguir o mesmo para aceitar que estejam mortos pacientes com corpo quente, corado e flexível, que respiram e podem continuar respirando mesmo sem aparelhos. Sua sugestão, contudo, é de que não precisaríamos definir tais pacientes ou bebês anencefálicos como mortos para autorizar que sejam doadores, desde que o diagnóstico não deixasse lugar a dúvidas. Em termos brasileiros isto eqüivaleria a dizer que a morte encefálica só é morte para fins de transplantes, mas que de resto não é morte. Como, porém, a sugestão de Singer não foi adotada, os anencefálicos não podem morrer, para fins de transplantes, e portanto não servem como doadores. Só morrem quando começam a deteriorar-se, sendo então desligados do respirador.

O Parlamento da Dinamarca criou em 1987 um Conselho de Ética, para assessorar o Ministério da Saúde. Como não utilizavam o conceito de morte cerebral, o Conselho consultou a população e propôs que o critério da morte continuasse sendo a interrupção total e irreversível da circulação e da respiração, porém admitindo que a parada de todas as funções cerebrais caracterizaria um “processo irreversível de morte” (Singer, p. 63). A partir daí, o paciente não teria mais direito a outros meios artificiais para manter-se vivo, pois o moribundo não tiraria nenhum benefício disto. Porém o Conselho de Ética Dinamarquês recomendou então que se utilizassem aqueles meios artificiais que retardariam a conclusão do processo de morte, por mais 48 horas, para que se pudessem extrair os órgãos, desde que a pessoa não tivesse registrado previamente sua recusa à doação. Tal solução, para Singer, tem o mérito de distinguir claramente três questões: “

1) Quando morre um ser humano?
2) Quando é lícito deixar de intentar manter vivo um ser humano?
3) Quando é lícito extrair órgãos de um ser humano com o fim de transplantá-los a outro ser humano?

Apesar do mérito filosófico dessa proposta, ela não foi aceita, e a Dinamarca acabou alinhando-se, por uma lei de 1990, ao grupo dos países europeus que aceitam a morte cerebral como um critério da morte.

É na Grã-Bretanha então que Singer vai procurar uma solução. Lá existem provavelmente entre 1000 e 1500 pessoas em estado vegetativo permanente (PVS), em hospitais e clínicas. O caso de Tony Bland (1989), pisoteado pela torcida de um jogo de futebol, parece-lhe emblemático. Se na multidão morreram 95 pessoas pisoteadas, Tony Bland não morreu, mas com o pulmão esmagado ficou sem oxigênio, e o córtex se destruiu. O juiz local não permitiu que se pusesse fim à vida de Tony Bland intencionalmente, pela interrupção da alimentação artificial. - Nos Estados Unidos, um caso semelhante, de Nancy Beth Cruzan, tivera como desfecho um epitáfio onde consta: “Nasceu em 20 de julho de 1957. / Morreu em 11 de janeiro de 1983. / Em paz em 26 de dezembro de 1990 (Singer, p. 72) - Ora, a decisão final inglesa, no caso de Tony Bland, levou em conta a qualidade de vida (e não a “santidade” da mesma): sua vida não valia mais a pena; e embora ele fosse inocente, era lícito provocar-lhe a morte, “negando-lhe a satisfação das necessidades vitais básicas, por razões humanitárias”. - O famoso caso de Karen Quinlan buscara apoiar-se, com a ajuda da igreja católica, no conceito de recursos “ordinários e extraordinários”, mas para Singer isso apenas disfarça a questão da intenção de interromper uma vida que já não tem mais nenhum sentido humano. No caso desta moça, aliás, o “recurso extraordinário” resumia-se a um respirador (que não pode ser considerado, a rigor, um tratamento penoso para a paciente). - No caso de Tony Bland, será que os juizes da Câmara dos Lordes teriam sancionado uma eutanásia não-voluntária? Se a lei britânica permite que um paciente deixe de ser alimentado artificialmente, a questão ética não está no fato de ser uma omissão ao invés de uma ação, mas se baseia na idéia de que a vida desses pacientes em estado vegetativo persistente não lhes traz mais nenhum benefício. Mesmo preservadas, são existências apenas biológicas, não são mais vida humana. (Aliás, se preferíssemos utilizar uma linguagem mais kierkegaardiana, bastaria inverter os substantivos: “mantêm apenas a vida biológica, sem um sentido, e não se realizam mais numa existência humana”.) - Mas, provocador como é, Peter Singer pergunta então: “Se desconectar um tubo pode eventualmente ser legal, por que não o seria aplicar uma injeção letal?” Ele pergunta: “Que base ética tem tal distinção?” (p. 87) E conclui esta parte do livro considerando madura a necessidade de uma nova ética.

Tomando o caso do aborto, Singer critica o grupo “pro choise”, pois ele crê que às vezes uma boa política pode ser também má filosofia: se é verdade que o feto tem os mesmos direitos do bebê, então não cabe à mãe escolher, assim como a escravidão não pode depender de uma escolha do negreiro... (p. 93) Mas Peter Singer é mais do que um filósofo provocante. Para muita gente, ele é irritante, e talvez por uma razão principal: não sendo um idealista utópico a traçar ideais impossíveis de realizar na prática, embora absolutos na exigência, não sendo um deontologista partidário de uma ética de intenção, mas posicionando-se antes voltado para uma ética da responsabilidade, para as possibilidades reais e realizáveis, mesmo com recursos finitos, e assumindo assim a dimensão da finitude e a conseqüente necessidade de administrar de maneira sistêmica nossas ações, Singer relaciona todas as coisas, mostra as suas diversas implicações recíprocas, como quando escreve: “Para ser justo eu deveria acrescentar que descrever o movimento anti-abortista como ‘pró vida’ é tão errôneo como definir os defensores do aborto legal como ‘pró escolha’. Há poucos vegetarianos no movimento pró vida. A maioria dos seus membros traçam uma linha marcada entre os seres humanos, cujas vidas desejam proteger, e os animais não humanos, cujo assassinato defendem cada vez que comem. Por essa razão, o movimento deveria chamar-se ‘pró vida humana’. Mas isso não seria totalmente correto, porque o movimento não é contra os assassinatos nas guerras ou a pena de morte. Portanto, a definição que mais se ajusta é ‘pró vida humana inocente’. E nem sequer esta é muito exata, porque o movimento não faz nada para salvar as crianças da morte por desnutrição ou enfermidades evitáveis nas regiões mais pobres do mundo, embora esta seja - comparada com lutar contra o aborto - uma forma muito mais segura e eficaz de salvar vidas de seres humanos inocentes.”(p. 94)

Embora nossa apresentação das idéias de Singer deva concentrar-se mais nas relacionadas com a morte, não resistimos a tentação de mostrar como ele, ao repensar a vida, em seus inícios, busca argumentos em favor de uma posição que começa a respeitar o embrião depois de duas semanas. Ele o faz com um curioso experimento mental (p. 101), o da possibilidade de subdivisão depois da fecundação. Se queremos tratar o conjunto de células como se fossem indivíduos, por que então não utilizar nomes próprios, para personalizar? Escreve ele: “Se considerarmos o embrião como um indivíduo desde a concepção - chamemo-lhe Marion -então, o que sucede a Marion se o embrião se divide? Os gêmeos recém formados são Marion e um novo gêmeo, por exemplo, Ruth? Ou se trata de dois novos gêmeos, por exemplo, Ruth e Esther? Ambas as respostas suscitam paradoxos. Se Marion ainda existe, qual dos dois gêmeos é ela? Não há nenhuma base para dizer que um deles esteja mais vinculado à Marion original do que o outro. Mas se nenhum dos dois novos gêmeos é Marion, o que terá sucedido a ela? Terá desaparecido? Deveríamos então lamentar a perda de um ser humano, como eu lamentaria a perda de uma de minhas filhas, mesmo que ela fosse substituída por outras duas?” Por isso, Singer conclui que só deveríamos falar de um indivíduo humano uns 14 dias após a concepção, quando o novo ser já não se divide mais, e ao menos neste sentido é realmente um indivíduo. - Isto, sem falar de que a expressão “o momento da concepção” hoje se revela extremamente vaga, a ponto de os cientistas alemães congelarem óvulos com o espermatozoide já dentro, mas ainda não fundidos: a concepção, só ela, dura umas 24 horas.

Um outro problema atual foi aludido pelo especialista em bioética alemão Hans-Martin Sass: Se a interrupção da vida cerebral é critério de morte, haveria algo inversamente proporcional no início, e a vida humana começaria com os primeiros sinais da atividade cerebral? De qualquer maneira, Singer acha que o critério da morte cerebral constitui “uma decisão ética, não uma decisão científica” (p. 110). Quanto a isso Singer pode estar certo, pois a ética trabalha com os dados existentes disponíveis, caso contrário teríamos de aceitar gerações inteiras sem ética, enquanto a ciência demorasse a fazer suas descobertas, o que não seria ético. Pois todos os homens de todas as épocas devem estar igualmente próximos da ética.

Infelizmente, não cabe nesta comunicação introdutória a interessantíssima questão da necessidade de uma reclassificação zoológica do Homo sapiens, que levasse em conta nosso estreito parentesco com os chimpanzés, conforme as propostas de Richard Dawkins e Jared Diamond e que talvez nos definissem como “o terceiro chimpanzé”. Mas se pertencemos à mesma família e ao mesmo gênero dos chimpanzés e dos gorilas, o que isso altera em termos de definição da morte do homo sapiens? E o que muda em relação à problemática da “pessoa”? Existem pessoas não-humanas, em nosso planeta? Singer radicaliza sua posição perguntando: “Por que deveríamos considerar sacrossanta a vida de uma criança anencefálica e acreditar-nos com liberdade para matar gibões para utilizar seus órgãos?” (p. 182

Outra questão que irrita, e que é uma questão filosófica, mas que permanece aberta à discussão na obra de Singer, é a de saber se ações e omissões se eqüivalem. Nosso autor não fecha a questão. Até modula e modera suas respostas. Ao mesmo tempo em que libera o médico de escrúpulos nos casos de terem de escolher entre duas vidas, tal posição tem o seu preço ao aumentar a responsabilidade: “Num mundo com meios de transportes e de comunicação modernos, no qual algumas pessoas vivem à beira da inanição enquanto outras possuem enormes fortunas, sempre há algo que possamos fazer em alguma parte, para manter com vida uma pessoa enferma ou mal-nutrida. Que todos os que vivemos em países ricos, com rendas muito superiores às necessárias para satisfazer nossas necessidades, deveríamos estar fazendo muito mais para ajudar as pessoas de países mais pobres a ter um nível de vida que lhes permita enfrentar suas necessidades, é uma questão com a qual a maioria das pessoas sérias estará de acordo; mas o aspecto preocupante desta idéia de responsabilidade é que não parece haver um limite sobre o quanto devemos fazer. Se somos tão responsáveis pelo que deixamos de fazer quanto pelo que fazemos, estará errado comprar roupa da moda ou cear num restaurante caro quando este dinheiro poderia haver salvo a vida de um desconhecido que morre por não ter o suficiente para comer? O não doar dinheiro a organizações de ajuda é realmente uma forma de assassinato ou algo tão errado quanto matar?(p. 192s.)

IV.

Está na hora de nos aproximarmos do final desta apresentação. Convém então, resumidamente, esboçar as conclusões do autor que escolhemos, e que aparecem na terceira parte do livro. Para sermos brutalmente rápidos, há que enunciar dois pressupostos que para ele sustentam a ética tradicional. “O primeiro desses supostos é que somos responsáveis pelo que fazemos intencionalmente, mas de certo modo não somos responsáveis pelo que não impedimos deliberadamente. O segundo é que as vidas de todos os membros de nossa espécie, e somente deles, merecem maior proteção que a vida de qualquer outro ser.” (p. 215) Sem esses dois pressupostos a ética que Singer chama tradicional não pode sobreviver. - Por fim, Peter Singer enumera cinco mandamentos daquela que chama “ética tradicional” e a cada um vai antepondo um novo mandamento, na nova perspectiva. Diferentemente do livro, apresentaremos os cinco mandamentos tradicionais e depois os cinco mandamentos reformados.

1o. antigo mandamento: Considerar que toda vida humana tem o mesmo valor;

2o. antigo mandamento: Nunca pôr fim intencionalmente a uma vida humana inocente;

3o. antigo mandamento: Nunca tires tua própria vida e tenta evitar que outros tirem as suas;

4o. antigo mandamento: Crescei e multiplicai-vos;

5o. antigo mandamento: Considera qualquer vida humana sempre mais valiosa que qualquer vida não humana.


1o. novo mandamento: Reconhecer que o valor da vida humana varia;

2o. novo mandamento: Responsabiliza-te pelas conseqüências de tuas decisões;

3o. novo mandamento: Respeita o desejo de viver e de morrer de uma pessoa;

4o. novo mandamento: Trazer ao mundo apenas crianças que sejam desejadas;

5o. novo mandamento: Não discriminar em razão da espécie.

Dissemos que Peter Singer é um filósofo. E ele o é inclusive ao buscar coerência em sua proposta e ao se recusar a entender a ética como um terreno de opiniões arbitrárias ou mesmo traçado apenas pelas emoções. Considera que essa seria uma visão conservadora da ética. Não é essa a dele, que se baseia em conceitos racionais, argumentos e discussões. Pois se alguém nos disser: “Muito bem, esta é a tua opinião, mas eu tenho a minha”, isto não deve jamais representar o final da discussão. Singer sabe também que a temática da vida e da morte é somente uma parte da ética, embora muito importante.

Poderíamos então encerrar esta palestra abrindo e alargando os horizontes ainda mais do que o faz este autor, e para isso seria importante recordar que a ética não se reduz, de maneira alguma, a uma simples lista objetiva de coisas permitidas ou proibidas. A ética é muito mais do que algum código. A ética não se resume a tábuas das leis, mas supõe a educação moral das pessoas, pelo desenvolvimento de sua sensibilidade e de seus fundamentos argumentativos, além da educação de seus hábitos, tão bem estudados na perspectiva da ética das virtudes, que é defendida nos dias de hoje por médicos e filósofos, como por exemplo pela figura ímpar do Dr. Edmund Pellegrino.


Um dia, pronto, me acabo / e seja o que Deus quiser /

Morrer, que me importa, o diabo / é deixar de viver.

(Mário Quintana)