segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

30/12/2004
Médicos discutem venda de órgão em transplante
A prática é condenada pela OMS e pela maioria dos especialistas

Alexander M. Capron e Luc Noel*
Especial para o IHT
Em Genebra, Suíça

Cinqüenta anos atrás, em dezembro de 1954, uma equipe de médicos do Hospital Peter Bent Brigham, em Boston, transplantou um rim de um rapaz para seu irmão gêmeo, que viveu mais oito anos. Embora já houvesse uma experiência anterior de transplante, essa foi a primeira vez que o órgão transplantado sobreviveu mais de um ano.

Desde então, os progressos notáveis das técnicas cirúrgicas e do controle farmacêutico da rejeição de órgãos fizeram do transplante o tratamento preferido para enfrentar a falência de órgãos em fase terminal. Além disso, o transplante de células e tecidos pode salvar vidas, restabelecer funções como a visão e melhorar a qualidade de vida, enquanto reduz para a sociedade a carga financeira de muitas doenças.

Apesar desse progresso, permanecem sérios problemas éticos e logísticos, como a crescente lacuna entre o número de pacientes nas listas de espera e os órgãos disponíveis.

Infelizmente, algumas tentativas de reduzir essa brecha podem piorar as coisas em termos éticos e de segurança. Evitar esses riscos exige políticas oficiais cuidadosas e coordenadas, comportamento ético por parte dos médicos e muitos atos individuais de compaixão.

Todos os corações, a maioria dos fígados e pulmões e quase todos os rins transplantados anualmente vêm de pessoas que acabaram de morrer. Em muitos países, cartões de doadores ou documentos semelhantes são meios fáceis para as pessoas indicarem o desejo de que seus órgãos sejam usados dessa maneira.

Mas mesmo quando existe um cartão de doador a prática predominante em todo o mundo é pedir autorização aos parentes do morto para retirar os órgãos.

A livre doação de órgãos e tecidos tem sido uma marca dos transplantes há cinco décadas. Ela foi reconhecida como um dos princípios de orientação básicos pela Assembléia Mundial de Saúde em 1991 e incorporada às leis da maioria dos países-membros da Organização Mundial de Saúde.

Nos últimos anos, alguns médicos de transplantes defenderam mudanças nas leis para permitir o pagamento por órgãos, como meio de aumentar a oferta, e em alguns países o comércio foi introduzido nos transplantes, discretamente no caso de órgãos e abertamente no de tecidos.

Essa mudança foi associada a outra: a maior disponibilidade de órgãos de doadores vivos, não apenas rins, mas recentemente partes de fígados e pulmões. Enquanto os primeiros transplantes de rim bem-sucedidos envolveram doadores vivos e parentes, os doadores mortos logo se tornaram a regra na América do Norte e na Europa.

A preferência por essa fonte de órgãos, outro princípio básico da OMC de 1991, repousa na premissa ética de que é melhor não pôr em risco a vida de uma pessoa saudável, mesmo que ela esteja de acordo e seja psicologicamente capaz de assumir o risco da doação.

Mas devido à escassez de órgãos disponíveis nos Estados Unidos, há vários anos a maioria dos doadores de rim foram pessoas vivas, e o mesmo vale hoje para muitos países desenvolvidos. Os doadores vivos também são a fonte predominante em países onde as tradições culturais são contrárias à remoção de órgãos de cadáveres, naqueles onde a declaração de morte com base na ausência de funções cerebrais não é amplamente aceita, ou onde os hospitais não estão equipados para atender pacientes em estado grave, que são candidatos a doação se não puderem ser salvos.

A livre intenção de doar por parte de um parente pode ser contestada em alguns casos (por exemplo, por causa de expectativas da família ou de pressão direta), mas essas preocupações empalidecem ao lado dos problemas encontrados com doadores não-parentes.

Em alguns países, estes são geralmente pessoas muito pobres, que vendem um rim --muitas vezes por uma quantia irrisória-- na tentativa desesperada de prover as necessidades de suas famílias. Às vezes não há de fato uma opção, e os "doadores" são na verdade vítimas de tráfico humano, como documentou o Conselho Europeu.

Em todo o mundo, centros de transplantes anunciam pacotes que incluem uma fonte (paga) de rim. Os registros de "turistas" de transplantes que mais tarde sofrem rejeição, hepatite, Aids ou outras doenças transmissíveis devem despertar dúvidas sobre a qualidade do tratamento, mas a necessidade principal é restabelecer as proteções éticas e dos direitos humanos.

Reconhecendo a urgência do problema, a Assembléia Mundial de Saúde pediu em maio a todos os países que protejam os grupos mais pobres e vulneráveis do "turismo de transplante" e da venda de órgãos e tecidos.

A assembléia também apoiou iniciativas para documentar amplamente o resultado da doação entre vivos, não apenas dos receptores mas também dos doadores, sobre os quais existem poucos dados hoje. A OMC está trabalhando com países e organizações profissionais para estabelecer um banco de dados global.

As conseqüências em longo prazo para os doadores vivos só são aceitáveis quando eles são escolhidos e acompanhados cuidadosamente, e seu bem-estar é uma preocupação para a equipe de transplante e para a comunidade. Com demasiada freqüência os doadores não-parentes são virtualmente abandonados depois da cirurgia.

A atenção dos países membros da OMC demonstra o lugar significativo que o transplante adquiriu na promoção da saúde humana. Mas também serve como lembrete de que ainda há problemas e de que as próprias tentativas de abordar esses problemas podem produzir sérias preocupações éticas e de segurança.

*A. M. Capron é diretor do departamento de ética, comércio, direitos humanos e legislação de saúde da Organização Mundial de Saúde. Luc Noel é coordenador do departamento de tecnologias essenciais de saúde da OMC.

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