domingo, 28 de fevereiro de 2010

11/03/2006
A nova desordem nuclear
O caso do Irã e o recente acordo entre Índia e EUA põem à prova o atual equilíbrio atômico mundial

Luis Prados
em Madri

Mais de 15 anos depois do fim da Guerra Fria, o mundo continua sentado sobre um enorme barril de pólvora: russos e americanos conservam mais de 30 mil ogivas nucleares e existem quase 5 mil toneladas de urânio altamente enriquecido e 450 de plutônio em poder de vários países, são suficientes para fabricar mais milhares de armas atômicas.

O quadro se completa com mais de 500 incidentes de contrabando de produtos nucleares ou radioativos confirmados desde 1993 pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), o órgão da ONU encarregado de zelar pelo cumprimento do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), uma peça-chave da ordem mundial, para muitos hoje avariada.

"A assinatura do TNP em 1968 e sua entrada em vigor dois anos depois foi possível pelo medo dos países de que se desencadeasse uma guerra nuclear", afirmou um especialista que conhece há anos o trabalho da AIEA. "O equilíbrio de terror tornou aceitável um compromisso entre os países nucleares e os que não o eram, que consiste no 'eu não prolifero e em troca você se desarma'. Isso não existe mais. Depois da Guerra Fria, veio um certo caos", acrescenta.

Apesar de nos últimos 30 anos, segundo o consenso de especialistas, o TNP ter evitado a multiplicação do número de países detentores de armas atômicas -- atualmente só as possuem os cinco grandes, mais Índia, Paquistão e Israel, que nunca assinaram o tratado --, os casos da Coréia do Norte e do Irã puseram o TNP no limite de sua validade, ao colocar sob a luz mais crua o grande jogo de estratégia e a dupla moral da comunidade internacional.

A Coréia do Norte saiu do TNP em 2003 e faz dois anos que os inspetores da AIEA visitaram suas instalações nucleares. Existem suspeitas fundadas de que ela já pode fabricar armas atômicas. Mas seu caso é discutido em Pequim em negociações multilaterais.

O expediente do Irã, que durante 18 anos escondeu que desenvolvia um programa nuclear, já está sobre a mesa do Conselho de Segurança da ONU, e suas instalações foram submetidas a "intensas verificações " pela AIEA, que não pôde concluir se seus planos são "exclusivamente pacíficos".

Pelo contrário, Paquistão, Israel e Índia não se submeteram a qualquer controle e o último acaba de ser recompensado pela Casa Branca com um grande acordo de transferência de material e tecnologia atômicos. Os critérios morais não contam no âmbito nuclear. Como indicam fontes da União Européia, "o importante não são as armas, mas o regime que as possui e seu contexto geopolítico".

Exemplos do primeiro são também o Irã e a Índia. Por um lado, os EUA incentivaram o xá nos anos 70 a implementar um plano nuclear, e por outro condenaram em 1974 o primeiro teste nuclear realizado com fins científicos por Nova Déli, na época aliada da União Soviética.

De fato, George W. Bush, com o acordo feito há alguns dias com o governo indiano, pôs fim a uma política seguida por seis presidentes americanos, de Nixon a Clinton, passando por seu próprio pai. A essa questão de confiança na democracia mais populosa do mundo, contra a teocracia dos aiatolás que clamam pela destruição de Israel, é preciso somar a percepção de segurança, a razão estratégica dos países que ambicionam possuir armas atômicas.

Se Israel as utiliza como elemento máximo de dissuasão contra um cerco de países árabes hostis, o mesmo ocorre atualmente com o Irã, rodeado de potências nucleares e de tropas e bases americanas.

Haizam Amirah, especialista em Oriente Médio e pesquisador do Real Instituto Elcano de Estudos Internacionais, aponta outros motivos: "Os iranianos calculam que têm à sua frente uma janela de oportunidade para conseguir sua arma. Sentem-se fortalecidos em nível regional. Vêem os EUA reféns de sua influência entre os xiitas do Iraque; o inimigo taliban já não existe no Afeganistão, o Hamas triunfou nas eleições palestinas e o preço do petróleo está muito alto. Não se deve esquecer que 25% do consumo mundial de petróleo passam todos os dias pelo estreito de Ormuz, que está sob controle iraniano".

Um dado mais decisivo para os planos de Teerã é a leitura que os mulás, segundo Amirah, fizeram da invasão do Iraque e que ele formula assim: "Os EUA puderam fazer uma troca de regime no país vizinho porque não tinha capacidade de dissuasão, enquanto a Coréia do Norte, que a tem, teve outra sorte".

Fiasco iraquiano e duplo critério internacional à parte, os analistas concordam que um Irã nuclear desencadearia uma corrida de armas no Oriente Médio à qual se somariam previsivelmente Arábia Saudita, Egito, Turquia e até a Argélia.

Os críticos do acordo entre Washington e Déli afirmam que este também envia uma mensagem equivocada aos países tentados pela arma atômica, já que "premia um mau comportamento", segundo fontes da AIEA. Foi o que disse esta semana em Viena um representante da Líbia, que se queixou publicamente de não ser "compensado" por ter aberto há dois anos seus arsenais de armas de destruição em massa para britânicos e americanos.

Não obstante, Trípoli negocia atualmente com Paris um acordo de cooperação de energia nuclear civil. O governo paquistanês também exigiu de Bush durante sua visita a Islamabad o mesmo tratamento nuclear que receberá a Índia, no que foi imediatamente descartado pelos EUA, que não esquecem o supermercado atômico aberto por Abdul Qader Jan, o pai da bomba paquistanesa, castigado e perdoado pelo presidente Pervez Musharraf.

Além disso, o acordo assinado em Déli, acrescentam seus detratores, dará lugar a uma nova corrida de armas ou no mínimo a uma tentativa de modernização de seus arsenais por parte de Paquistão e China, já que os EUA vão fornecer à Índia tecnologia e material que, teme-se, lhe permitirão fabricar mais armas atômicas por ano.

Mas o pacto nuclear entre as duas maiores democracias, que ainda deverá ser aprovado pelo Congresso americano, também apresenta aspectos positivos, principalmente ecológicos, porque conterá a demanda de petróleo causada pelo crescimento econômico exponencial da Índia e porque permite que dois terços de seu programa nuclear -- 14 dos 22 reatores que possui, os dedicados à energia de uso civil -- sejam controlados por inspetores da AIEA.

O próprio Mohamed el Baradei, diretor desse órgão, deu boas-vindas ao acordo, entre outras coisas, indicam fontes diplomáticas e européias, "porque além da não-proliferação a responsabilidade de que não ocorra outro Chernobyl também é da AIEA".

A aliança nuclear entre Índia e EUA tem um motivo estratégico de maior calado: o isolamento da China, a quem os neoconservadores vêem como a grande rival da hegemonia americana em meados deste século. Uma aliança forjada quando os EUA, como demonstram os professores Keir A. Lieber e Daryl G. Press este mês na revista "Foreign Affairs", inauguram uma nova era de primazia nuclear.

Depois de 40 anos de vigência da chamada destruição mútua garantida -- lançar uma guerra nuclear equivalia a um suicídio --, Washington tem a disposição, devido à modernização de seus arsenais juntamente com a deterioração e pobreza dos da Rússia e da China, respectivamente, de desferir o primeiro golpe sem dar ao inimigo possibilidade de resposta.

As velhas certezas do equilíbrio nuclear parecem ter caducado.
ciências teóricas de Aristóteles
Anthony Kenny



Ciência e explicação

Aristóteles contribuiu para o desenvolvimento de muitas ciências, mas, em retrospectiva, percebe-se que o valor desse contributo foi bastante desigual. A sua química e a sua física são muito menos impressionantes do que as suas investigações no domínio das ciências da vida. Em parte porque não possuía relógios precisos nem qualquer tipo de termómetro, Aristóteles não tinha consciência da importância da medição da velocidade e da temperatura. Ao passo que os seus escritos zoológicos continuavam a ser considerados impressionantes pelo próprio Darwin, a sua física estava já ultrapassada no século vi d. C.

Em obras como Da Geração e Corrupção e Do Céu, Aristóteles legou aos seus sucessores uma imagem do mundo que incluía muitos traços herdados dos seus predecessores pré-socráticos. Adoptou os quatro elementos de Empédocles: terra, água, ar e fogo, caracterizado cada um deles por um único par de qualidades primárias, calor, frio, humidade e secura. Cada elemento tinha o seu lugar natural no cosmos ordenado, em direcção ao qual tinha tendência para ir por meio de um movimento característico; assim, os sólidos terrestres caíam, enquanto o fogo se erguia cada vez mais alto. Cada um desses movimentos era natural ao seu elemento; existiam outros, mas eram «violentos». (Mantemos hoje um vestígio desta distinção aristotélica quando contrastamos a «morte natural» com a «morte violenta».) A Terra ocupava o centro do universo: em seu torno, uma sucessão de esferas cristalinas concêntricas sustentavam a Lua, o Sol e os planetas nas suas viagens ao longo dos céus. Mais distante, uma outra esfera sustentava as estrelas fixas. Os corpos celestes não continham os quatro elementos terrestres; eram antes constituídos por um quinto elemento, ou quintessência. Além de corpos, possuíam almas: intelectos vivos divinos que guiavam as suas viagens ao longo do céu. Estes intelectos eram responsáveis pelo movimento, estando eles próprios em movimento, e por detrás deles, afirmava Aristóteles, deveria existir uma fonte de movimento, estando ela própria, no entanto, imóvel. Era a divindade última e imutável que punha em movimento todos os outros seres «em resultado do amor» — o mesmo amor que, nas últimas palavras do Paraíso de Dante, movia o Sol e as primeiras estrelas.

Mesmo o melhor dos estudos científicos de Aristóteles possui hoje um interesse meramente histórico; em vez de registar as suas teorias em pormenor, passarei a descrever a noção de ciência que sustenta todas as suas investigações nos diversos domínios. A concepção aristotélica de ciência pode ser resumida se dissermos que era empírica, explicativa e teleológica.

A ciência começa pela observação. No decurso das nossas vidas apercebemo-nos das coisas com os nossos sentidos, recordamo-las, construímos um corpo de experiências. Os nossos conceitos são retirados da nossa experiência; na ciência, a observação tem primazia sobre a teoria. Embora, no seu estado de maturidade, se possa fixar e transmitir a ciência por meio da forma axiomática descrita nos Analíticos Posteriores, torna-se evidente, pelos trabalhos pormenorizados de Aristóteles, que a ordem da descoberta é diferente da ordem da exposição.

Se a ciência começa com a percepção sensorial, termina com o conhecimento intelectual, que Aristóteles vê como possuindo um carácter especial de necessidade. As verdades necessárias são como as verdades imutáveis da aritmética: dois mais dois são quatro, sempre assim foi e sempre assim será. Opõem-se-lhes as verdades contingentes, tais como a verdade de os gregos terem vencido uma grande batalha naval em Salamina; algo que poderia ter acontecido de outro modo. Parece estranho afirmar, como Aristóteles, que aquilo que é conhecido tem de ser necessário: não será que podemos ter também conhecimento de factos contingentes da experiência, tais como o de Sócrates ter bebido a cicuta? Houve quem julgasse que Aristóteles estava a argumentar, falaciosamente, partindo da verdade

Necessariamente, se p é conhecida, p é verdadeira.

para

Se p é conhecida, p é necessariamente verdadeira.

o que não é de modo algum a mesma coisa. (É uma verdade necessária que se eu sei que há uma mosca na minha sopa, há uma mosca na minha sopa. Mas, mesmo que eu saiba que há uma mosca na minha sopa, não é necessariamente verdade que haja uma mosca na minha sopa: posso tirá-la de lá.) Mas talvez Aristóteles estivesse a definir a palavra grega para «conhecimento» de modo a restringir-se ao conhecimento científico. É uma hipótese muito mais plausível, especialmente se levarmos em linha de conta que, para Aristóteles, as verdades necessárias não se restringem às verdades da lógica e da matemática, mas incluem todas as proposições universalmente verdadeiras, ou mesmo «verdadeiras na sua maior parte». Mas a consequência — que seria certamente aceite por Aristóteles — de que a história não pode ser uma ciência, já que lida com acontecimentos individuais, mantém-se.

A ciência é, pois, empírica; é também explicativa, no sentido em que é uma procura de causas. No léxico filosófico incluído na sua Metafísica, Aristóteles distingue quatro tipos de causas ou explicações. Em primeiro lugar, afirma, há aquilo de que as coisas são feitas, e a partir da qual são feitas, tal como o bronze de uma estátua ou as letras de uma sílaba. A isto chama causa material. Depois, há a forma e o padrão de uma coisa, que podem ser expressos na definição da mesma; Aristóteles fornece-nos um exemplo: o comprimento proporcional de duas cordas de uma lira é a causa de uma ser a oitava da outra. O terceiro tipo de causa é a origem de uma mudança ou estado de repouso em qualquer coisa: Aristóteles dá como exemplos uma pessoa que toma uma decisão, um pai que gera uma criança, e em geral todos os que fazem ou alteram uma coisa. O quarto e último tipo de causa é o fim ou objectivo, aquilo em virtude do qual se faz algo; é o tipo de explicação que damos quando nos perguntam por que motivo estamos a passear e nós respondemos «para manter a boa forma».

O quarto tipo de causa (a «causa final») tem um papel muito importante na ciência aristotélica. Aristóteles investiga as causas finais não só da acção humana, como também do comportamento animal («Por que razão tecem as aranhas teias?») e dos seus traços estruturais («Por que razão têm os patos membranas interdigitais?»). Existem causas finais também para a actividade das plantas (tais como a pressão descendente das raízes) e dos elementos inanimados (tais como o impulso ascendente das chamas). Às explicações deste tipo chamamos «teleológicas», a partir da palavra grega telos, que significa fim ou causa final. Ao procurar explicações teleológicas, Aristóteles não atribui intenções a objectos inconscientes ou inanimados, nem está a pensar em termos de um Arquitecto Supremo. Está, sim, a enfatizar a função de diversas actividades e estruturas. Uma vez mais, estava mais inspirado na área das ciências da vida do que na química e na física. Até mesmo os biólogos posteriores a Darwin continuam a procurar incessantemente a função, ao passo que ninguém, depois de Newton, se lembrou de procurar uma explicação teleológica para o movimento dos corpos inanimados.

Palavras e Coisas

Ao contrário do seu trabalho nas ciências empíricas, há aspectos da filosofia teórica de Aristóteles que podem ainda ter muito para nos ensinar. Merecem especial destaque as suas afirmações acerca da natureza da linguagem, da natureza da realidade e da relação entre as duas.

Nas suas Categorias, Aristóteles apresenta uma lista dos diferentes tipos de coisas que podem afirmar-se a propósito de um indivíduo. Essa lista contém 10 artigos: substância, quantidade, qualidade, relação, espaço, tempo, postura, vestuário, actividade e passividade. Faria sentido dizer, por exemplo, que Sócrates era um ser humano (substância), que media 1,50 m (quantidade), que era talentoso (qualidade), que era mais velho que Platão (relação), que vivia em Atenas (espaço), que era um homem do século v a. C. (tempo), que estava sentado (postura), que envergava uma capa (vestuário), que estava a cortar um pedaço de tecido (actividade) e que foi morto por envenenamento (passividade). Esta não é uma simples classificação de predicados verbais: cada tipo de predicado irredutivelmente diferente, pensava Aristóteles, representa um tipo de entidade irredutivelmente diferente. Em «Sócrates é um homem», por exemplo, a palavra «homem» representa uma substância, nomeadamente Sócrates. Em «Sócrates foi envenenado», a palavra «envenenado» representa uma entidade chamada «passividade», nomeadamente o envenenamento de Sócrates. Aristóteles pensava provavelmente que qualquer entidade possível, fosse qual fosse a sua classificação inicial, seria, em última análise, atribuível a uma e apenas uma das 10 categorias. Assim, Sócrates é um homem, um animal, um ser vivo e, em última análise, uma substância; o crime cometido por Egisto é um assassinato, um homicídio, um acto de matar e, em última análise, uma actividade.

A categoria da substância é de importância primordial. As substâncias são coisas como mulheres, leões e couves, que podem ter uma existência independente e ser identificados como indivíduos de uma espécie particular; uma substância é, na despretensiosa expressão de Aristóteles, «um isto que é tal e tal» — este gato ou esta cenoura. As coisas que pertencem às outras categorias (às quais os sucessores de Aristóteles iriam chamar «acidentes») não são independentes; um tamanho, por exemplo, é sempre o tamanho de qualquer coisa. Os artigos das categorias «acidentais» existem apenas enquanto propriedades ou modificações de substâncias.

As categorias de Aristóteles não parecem ser exaustivas, e o seu grau de importância parece bastante desigual. Mas, mesmo que as aceitemos como uma possível classificação de predicados, será correcto considerar que um predicado representa qualquer coisa? Se «Sócrates corre» for verdadeira, deverá «corre» representar uma entidade de qualquer tipo, tal como «Sócrates» representa Sócrates? Mesmo que digamos que sim, é evidente que tal entidade não pode ser o significado da palavra «corre». Pois «Sócrates corre» faz sentido, mesmo sendo uma afirmação falsa; e por isso «corre» significa algo, mesmo que não exista aquilo que representa — neste caso, a corrida de Sócrates.

Se considerarmos uma frase como «Sócrates é branco», podemos, segundo Aristóteles, pensar em «branco» como algo que representa a brancura de Sócrates. Nesse caso, o que representa o «é»? Parecem existir diversas respostas possíveis a esta pergunta. a) Podemos dizer que não representa coisa alguma, limitando-se a marcar a relação entre sujeito e predicado. b) Podemos dizer que representa a existência, no sentido em que se Sócrates é branco, é porque existe qualquer coisa — talvez o Sócrates branco, ou talvez a brancura de Sócrates — que não existiria se Sócrates não fosse branco. c) Podemos dizer que representa o ser, entendendo-se «ser» como um infinitivo substantivado como «correr». Se escolhermos esta última resposta, parece ser necessário acrescentar que existem diversos tipos de ser: o ser denotado pelo «é» de um predicado substancial como «¼ é um cavalo» é um ser substancial, enquanto o ser denotado pelo «é» de um predicado acidental como «¼ é branco» é um ser acidental. Em textos diferentes, Aristóteles parece ter privilegiado ora uma, ora outra interpretação. A sua preferida é talvez a terceira. Nas passagens onde a expressa, retira dela a consequência de que o «ser» é um verbo de múltiplos significados, um termo homónimo com mais de um sentido (tal como «saudável» possui sentidos diferentes, mas relacionados, quando falamos de uma pessoa saudável, de uma pele saudável e de um clima saudável).

Afirmei anteriormente que, em «Sócrates é um homem», «homem» é um predicado da categoria da substância que representa a substância Sócrates. Mas esta não é a única análise que Aristóteles faz de uma frase deste género. Por vezes, esse «homem» parece representar antes a humanidade que Sócrates possui. Em tais contextos, Aristóteles distingue dois sentidos de «substância». Um este tal e tal — por exemplo, este homem, Sócrates — é uma substância primeira; a humanidade que ele possui é uma substância segunda. Quando fala nestes termos, Aristóteles esforça-se geralmente por evitar os universais do platonismo. A humanidade que Sócrates possui é uma humanidade individual, a humanidade própria de Sócrates; não é uma humanidade universal da qual todos os homens participem.

Movimento e Mudança

Uma das razões pelas quais Aristóteles rejeitou a Teoria das Ideias de Platão foi porque esta, tal como a metafísica eleática, negava de modo fundamental a realidade da mudança. Tanto na Física como na Metafísica, Aristóteles apresenta uma teoria da natureza da mudança concebida para enfrentar e desarmar o desafio de Parménides e Platão. Trata-se da sua doutrina do acto e potência.

Se considerarmos uma substância, como por exemplo um pedaço de madeira, descobrimos uma série de coisas verdadeiras no que respeita a essa substância num determinado momento, e uma série de outras coisas que, não sendo verdadeiras no que a ela diz respeito nesse momento determinado, poderão vir a sê-lo noutro momento. Assim, a madeira, apesar de ser fria agora, pode ser aquecida e transformada em cinza mais tarde. Aristóteles chamou «acto» àquilo que uma substância é, e «potência» àquilo que uma substância pode vir a ser: assim, a madeira está fria em acto mas quente em potência, é madeira em acto mas cinza em potência. A mudança do estado frio para o quente é uma mudança acidental que a substância pode sofrer sem deixar de ser a substância que é; a mudança do estado madeira para o estado cinza é uma mudança substancial em que ocorre uma mudança da própria substância. Em português podemos dizer, muito grosseiramente, que os predicados que contêm a palavra «pode», ou qualquer palavra com um sufixo modal como «ável» ou «ível», significam potência; os predicados que não contêm essas palavras significam acto. A potência, em contraste com o acto, é a capacidade de uma coisa para sofrer uma mudança de qualquer tipo, seja através da sua própria acção, seja através da acção de qualquer outro agente.

Os actos envolvidos em mudanças chamam-se «formas», e o termo «matéria» é utilizado como um termo técnico para designar aquilo que possui a capacidade para sofrer uma mudança substancial. Na nossa vida quotidiana, estamos familiarizados com a ideia de que uma e a mesma parcela de um ingrediente pode ser primeiro uma coisa e depois outro tipo de coisa. Uma garrafa contendo um quartilho de natas, depois de agitada, poderá conter manteiga e não natas. Aquilo que sai da garrafa é a mesma coisa que entrou: nada lhe foi retirado nem acrescentado. Contudo, aquilo que sai é diferente em género daquilo que foi introduzido. O conceito aristotélico de mudança substancial é derivado de casos como este.

A mudança substancial ocorre quando uma substância de um certo tipo se transforma numa substância de outro tipo. Aristóteles chama matéria àquilo que permanece a mesma coisa ao longo da mudança. A matéria assume primeiro uma forma e depois outra. Uma coisa pode mudar sem deixar de pertencer ao mesmo género natural, por meio de uma mudança que não pertence à categoria da substância, mas a qualquer uma das outras nove categorias: assim, um ser humano pode crescer, aprender, corar e ser subjugado sem deixar de ser humano. Quando uma substância sofre uma mudança acidental retém sempre uma forma ao longo da mudança, nomeadamente a sua forma substancial. Um homem pode ser primeiro P e depois Q, mas podemos sempre aplicar-lhe correctamente o predicado «¼ é um homem». E quanto à mudança substancial? Quando um pedaço de matéria é primeiro A e depois B, haverá algum predicado na categoria da substância, «¼ é C», que possamos sempre aplicar correctamente a essa matéria? Em muitos casos, não há dúvida de que existe tal predicado: quando o cobre e o estanho se transformam em bronze, a matéria em mudança nunca deixa de ser metal ao longo do processo. Contudo, não parece ser necessário que tal predicado deva existir em todos os casos; parece logicamente concebível que possa existir matéria que seja primeiro A e depois B sem que exista qualquer predicado substancial que possamos aplicar-lhe sempre correctamente. Em todo o caso, Aristóteles era dessa opinião; e chamou «matéria-prima» ao-que-é-primeiro-uma-coisa-e-depois-outra-sem-ser-coisa-alguma-o-tempo-todo.

A forma faz as coisas pertencerem a uma categoria particular; e, segundo Aristóteles, aquilo que faz as coisas serem indivíduos dessa categoria particular é a matéria. No dizer dos filósofos, a matéria é o princípio de individuação das coisas materiais. Isto significa, por exemplo, que duas ervilhas do mesmo tamanho e forma, por muito semelhantes que sejam, por mais propriedades ou formas que possam ter em comum, são duas ervilhas e não uma, porque correspondem a duas diferentes parcelas de matéria.

Não deve entender-se a matéria e a forma como partes de corpos, como elementos a partir dos quais os corpos são feitos ou peças dos quais possam ser retiradas. A matéria-prima não poderia existir sem forma: não precisa de assumir uma forma específica, mas tem de assumir uma forma qualquer. As formas dos corpos mutáveis são todas formas de corpos particulares; é inconcebível que exista uma qualquer forma que não seja a forma de um qualquer corpo. A não ser que queiramos cair no platonismo que Aristóteles explicitamente rejeitou com frequência, devemos aceitar que as formas são logicamente incapazes de existir sem os corpos dos quais são as formas. De facto, as formas nem existem em si próprias, nem são geradas do modo como as substâncias existem e são geradas. As formas, ao contrário dos corpos, não são feitas de coisa alguma; dizer que existe uma forma de A significa apenas que existe uma substância que é A; dizer que existe uma forma de cavalidade significa apenas que existem cavalos.

A doutrina da matéria e da forma é uma explicação filosófica de certos conceitos que empregamos na nossa descrição e manipulação quotidianas das substâncias materiais. Mesmo aceitando que a definição é filosoficamente correcta, fica ainda a questão: o conceito que procura clarificar terá realmente um papel a desempenhar numa explicação científica do universo? É sabido que aquilo que na cozinha parece uma mudança substancial de entidades macroscópicas possa surgir-nos no laboratório como uma mudança acidental de entidades microscópicas. A questão de saber se uma noção como a de matéria-prima possui, a um nível fundamental, qualquer aplicação à física, onde falamos de transições entre matéria e energia, continua a ser uma questão de opinião.

A forma é um tipo particular de acto, e a matéria um tipo particular de potência. Aristóteles pensava que a sua distinção entre acto e potência constituía uma alternativa à dicotomia entre Ser e Não-Ser, sobre a qual se apoiava a rejeição parmenídea da mudança. Uma vez que a matéria estava subjacente e sobrevivia a todas as mudanças, fossem substanciais ou acidentais, não se punha a hipótese de o Ser se tornar Não-Ser, ou de algo surgir a partir do nada. Uma das consequências desta explicação aristotélica, contudo, foi a ideia de que a matéria não poderia ter tido um princípio. Séculos mais tarde, isto colocaria um problema aos aristotélicos cristãos que acreditavam na criação do mundo material a partir do nada.

Alma, Sentidos e Intelecto

Uma das aplicações mais interessantes da doutrina da matéria e da forma de Aristóteles pode encontrar-se nos seus estudos de psicologia, nomeadamente no tratado Da Alma. Para Aristóteles, os homens não são os únicos seres que possuem alma ou psique; todos os seres vivos a possuem, desde as margaridas e moluscos aos seres mais complexos. Uma alma é simplesmente um princípio de vida: é a fonte das actividades próprias de cada ser vivo. Diferentes seres vivos possuem diferentes capacidades: as plantas crescem e reproduzem-se, mas não podem mover-se nem ter sensações; os animais têm percepção, sentem prazer e dor; alguns podem mover-se, mas não todos; alguns animais muito especiais, nomeadamente os seres humanos, conseguem também pensar e compreender. As almas diferem de acordo com estas diferentes actividades, por meio das quais se exprimem. A alma é, segundo a definição mais geral que Aristóteles nos apresenta, a forma de um corpo orgânico.

Tal como uma forma, uma alma é um acto de um tipo particular. Neste ponto, Aristóteles introduz uma distinção entre dois tipos de acto. Uma pessoa que não saiba falar grego encontra-se num estado de pura potência no que diz respeito à utilização dessa língua. Aprender grego é passar da potência ao acto. Porém, uma pessoa que tenha aprendido grego, mas que ao longo de um determinado tempo não faça uso desse conhecimento, encontra-se num estado simultâneo de acto e potência: acto em comparação com a posição de ignorância inicial, potência em comparação com alguém que esteja a falar grego. Ao simples conhecimento do grego, Aristóteles chama «acto primeiro»; ao facto de se falar grego chama «acto segundo». Aristóteles utiliza esta distinção na sua descrição da alma: a alma é o acto primeiro de um corpo orgânico. As operações vitais das criaturas vivas são actos segundos.

A alma aristotélica não é, enquanto tal, um espírito. Não é, de facto, um objecto tangível; mas isso resulta do facto de ser (como todos os actos primeiros) uma potência. O conhecimento do grego também não é um objecto tangível; mas não é, por isso, algo de fantasmagórico. Se há almas capazes, no seu conjunto ou em parte, de existirem sem um corpo — questão sobre a qual Aristóteles teve dificuldade em formar uma opinião — tal existência independente será possível não por serem simplesmente almas, mas por serem almas de um tipo particular com actividades vitais especialmente poderosas.

Aristóteles fornece descrições biológicas muito concretas das actividades da nutrição, crescimento e reprodução que são comuns a todos os seres vivos. O tema torna-se mais complicado, e mais interessante, quando procura explicar a percepção sensorial (específica dos animais superiores) e o pensamento intelectual (específico do ser humano).

Ao explicar a percepção sensorial, Aristóteles adapta a definição do Teeteto de Platão segundo a qual a sensação é o resultado de um encontro entre uma faculdade sensorial (como a visão) e um objecto sensorial (como um objecto visível). Contudo, para Platão, a percepção visual de um objecto branco e a brancura do próprio objecto são dois gémeos com origem na mesma relação; ao passo que, para Aristóteles, o ver e o ser visto são uma e a mesma coisa. Este último propõe a seguinte tese geral: uma faculdade sensorial em acto é idêntica a um objecto sensorial em acto.

Esta tese aparentemente obscura é outra aplicação da teoria aristotélica do acto e da potência. Permita-se-me ilustrar o seu significado por meio do exemplo do paladar. A doçura de um torrão de açúcar, algo que pode ser saboreado, é um objecto sensorial, e o meu sentido do paladar, a minha capacidade para saborear, é uma faculdade sensorial. A operação do meu sentido do paladar sobre o objecto sensível é a mesma coisa que a acção do objecto sensorial sobre o meu sentido. Ou seja, o facto de o açúcar ter um sabor doce para mim é uma e a mesma coisa que o facto de eu saborear a doçura do açúcar. O açúcar em si é sempre doce; mas só quando o coloco na boca a sua doçura passa de potência a acto. (Ser doce é um acto primeiro; saber a doce, um acto segundo.)

O sentido do paladar não é mais do que o poder para saborear, por exemplo, a doçura dos objectos doces. A propriedade sensorial da doçura não é mais do que ter um sabor doce para aquele que saboreia. Assim, Aristóteles tem razão quando afirma que a propriedade em acção é uma e a mesma coisa que a faculdade em operação. Claro que o poder para saborear e o poder para ser saboreado são duas coisas muito diferentes, a primeira relativa àquele que saboreia, e a segunda relativa ao açúcar.

Este tratamento da percepção sensorial é superior ao de Platão porque nos permite afirmar que as coisas do mundo possuem de facto qualidades sensoriais, mesmo quando não são percepcionadas. As coisas que não estão a ser vistas são realmente coloridas, e o mesmo se aplica aos cheiros e aos sons, que existem independentemente do facto de serem ou não percepcionados. Aristóteles pode afirmá-lo porque a sua análise do acto e da potência lhe permite explicar que as qualidades sensoriais são de facto poderes de um determinado tipo.

Aristóteles serve-se também desta teoria quando lida com as capacidades racionais e intelectuais da alma humana, fazendo uma distinção entre os poderes naturais, como o poder de queimar do fogo, e os poderes racionais, como a capacidade de falar grego. E defende que se todas as condições necessárias para o exercício de um poder natural estiverem presentes, esse poder será necessariamente exercido. Se pusermos um pedaço de madeira, adequadamente seco, sobre uma fogueira, o fogo queimá-lo-á; não há alternativa. Contudo, tal não acontece com os poderes racionais, que podem ser exercidos ou não, de acordo com a vontade do sujeito. Um médico que possua o poder para curar pode negar-se a exercitá-lo se o seu paciente for insuficientemente rico; pode até utilizar os seus talentos médicos para envenenar o paciente, em vez de o curar. A teoria dos poderes racionais de Aristóteles será usada para explicar o livre-arbítrio humano por muitos dos seus sucessores.

A doutrina de Aristóteles sobre os poderes intelectuais da alma é algo inconstante. Por vezes, o intelecto é apresentado como parte da alma; por conseguinte, e uma vez que a alma é a forma do corpo, o intelecto assim concebido deverá morrer com o corpo. Noutros pontos, Aristóteles argumenta que, sendo o intelecto capaz de apreender verdades necessárias e eternas, deverá ser em si mesmo, por afinidade, qualquer coisa de independente e indestrutível; e a dada altura sugere que a capacidade para pensar é algo de divino e exterior ao corpo. Finalmente, numa passagem desconcertante, objecto de intermináveis discussões ao longo dos séculos que se seguiriam, Aristóteles parece dividir o intelecto em duas faculdades, uma perecível e a outra imperecível:

O pensamento, tal como o descrevemos, é aquilo que é em virtude de poder tornar-se todas as coisas; ao passo que existe algo que é o que é em virtude de poder fazer todas as coisas: trata-se de uma espécie de estado positivo como a luz; pois, num certo sentido, a luz transforma as cores em potência em cores em acto. Neste sentido, o pensamento é separável, não passivo e puro, sendo essencialmente acto. E quando separado é exactamente aquilo que é, e só ele é imortal e eterno.
A característica do intelecto humano que terá por vezes levado Aristóteles a entendê-lo como separado do corpo e divino é a sua capacidade para o estudo da filosofia e, especialmente, da metafísica; e por isso temos de explicar finalmente de que modo Aristóteles entendia a natureza desta sublime disciplina.
Metafísica

«Há uma disciplina», escreve Aristóteles no quarto livro da sua Metafísica, «que teoriza sobre o Ser enquanto ser e sobre as coisas que pertencem ao Ser tomado em si mesmo.» A esta disciplina chama Aristóteles «filosofia primeira», definindo-a noutro texto como o conhecimento dos primeiros princípios e das causas supremas. As outras ciências, afirma, lidam com um tipo de ser particular, mas a ciência do filósofo diz respeito ao Ser universalmente e não apenas parcialmente. Noutras obras, contudo, Aristóteles parece restringir o objecto da filosofia primeira a um tipo particular de ser, nomeadamente a uma substância divina, independente e imutável. Existem três filosofias teóricas, afirma ele num outro texto: a matemática, a física e a teologia; e a primeira e mais digna das filosofias é a teologia. A teologia é a melhor das ciências teóricas porque lida com os seres mais dignos; precede a física e a filosofia natural, sendo mais universal do que elas.

Ambos os conjuntos de definições até ao momento considerados tratam a filosofia primeira como dizendo respeito ao Ser ou aos seres; diz-se também que é a ciência da substância ou substâncias. Em determinado ponto, Aristóteles afirma que a velha questão «O que é o Ser?» equivale à questão «O que é a substância?» Assim, a filosofia primeira pode ser considerada a teoria da substância primeira e universal.

Serão todas estas definições do objecto de estudo da filosofia equivalentes ou mesmo compatíveis? Alguns historiadores, considerando-as incompatíveis, atribuíram os diferentes tipos de definições a diferentes períodos da vida de Aristóteles. Mas, com algum esforço, podemos mostrar que é possível conciliá-las.

Antes de perguntarmos o que é o Ser enquanto ser, precisamos de esclarecer o que é o Ser. Aristóteles utiliza a expressão grega to on do mesmo modo que Parménides: o Ser é seja o que for que é seja lá o que for. Sempre que Aristóteles explica os sentidos de «to on», fá-lo explicando o sentido de «einai», o verbo «ser». O Ser, no seu sentido mais lato, é tudo o que possa surgir, numa qualquer frase verdadeira, antes da forma verbal «é». Segundo esta perspectiva, uma ciência do ser não seria tanto uma ciência daquilo que existe, mas antes uma ciência da predicação verdadeira.

Todas as categorias, diz-nos Aristóteles, exprimem o ser, porque qualquer verbo pode ser substituído por um predicado que contenha o verbo «ser»: «Sócrates corre», por exemplo, pode ser substituído por «Sócrates é um corredor». E todo o ser em qualquer categoria que não a da substância é uma propriedade ou modificação da substância. Isto significa que sempre que temos uma frase sujeito-verbo na qual o sujeito não seja um termo para uma substância, podemos transformá-la numa outra frase sujeito-verbo na qual o termo sujeito denota realmente uma substância — uma substância primeira, como um homem ou uma couve particulares.

Para Aristóteles, assim como para Parménides, é um erro equiparar simplesmente o ser à existência. Quando discute, na Metafísica, os sentidos de «ser» e «é» do seu léxico filosófico, Aristóteles nem sequer refere a existência como um dos sentidos do verbo ser, uma utilização que deverá distinguir-se da utilização do verbo com um complemento num predicado, tal como em «ser um filósofo». Isto surpreende-nos, já que ele próprio parece fazer essa distinção em livros anteriores. Nas Refutações Sofísticas, para contradizer a falácia segundo a qual aquilo em que se pensa deve existir para ser pensado, Aristóteles distingue entre «ser F», no qual ao verbo se segue um predicado (por exemplo, «ser pensado»), e apenas «ser». Aristóteles toma uma posição semelhante em relação ao ser F daquilo que deixou de ser, sem mais: por exemplo, de «Homero é um poeta» não se segue que Homero é.

Será talvez um erro procurar na obra de Aristóteles um só tratamento da existência. Quando os filósofos levantam questões a propósito das coisas que realmente existem e daquelas que não existem, é possível que tenham em mente três contrastes diferentes: entre o abstracto e o concreto (por exemplo, sabedoria versus Sócrates), entre o ficcional e o factual (por exemplo, Pégaso versus Bucéfalo) e entre o existente e o defunto (por exemplo, a Grande Pirâmide versus o Colosso de Rodes). Aristóteles lida com os três problemas em obras diferentes. Lida com o problema das abstracções quando discute os acidentes: são sempre modificações da substância. Qualquer afirmação sobre abstracções (como cores, acções, mudanças) deve ser analisável como uma afirmação sobre substâncias primeiras concretas. Lida com o problema do ficcional conferindo ao «é» o sentido de «é verdadeiro»: uma ficção é um pensamento genuíno, mas não é (ou seja, não é um pensamento verdadeiro). O problema sobre o existente e o defunto, que lida com as coisas que existem e aquelas que deixaram de existir, é resolvido pela aplicação da doutrina da matéria e da forma. Neste sentido, existir é ser matéria sob uma certa forma, é ser uma coisa de certa categoria: Sócrates deixa de existir ao deixar de ser um ser humano. Para Aristóteles, o Ser inclui qualquer coisa que exista de uma destas três maneiras.

Se o Ser é isso, o que é então o Ser enquanto Ser? A resposta é que não existe tal coisa. É certamente possível estudar o Ser enquanto ser e procurar as causas do mesmo. Mas isto é entrar num tipo de estudo especial, procurar um tipo de causa especial. Não é estudar um tipo de Ser especial nem procurar as causas de um tipo de Ser especial. Mais do que uma vez, Aristóteles insistiu em que «Um A enquanto F é G» deve ser entendido como um sujeito A e um predicado «é, enquanto F, G». Não deve ser entendido como consistindo num predicado «é G» que está ligado ao sujeito Um-A-enquanto-F. Eis um dos seus exemplos: «Um bem pode ser conhecido como bem» não deve ser analisado como «um bem como bem pode ser conhecido», porque «um bem como bem» é uma expressão destituída de sentido.

Mas se «A enquanto F» é um pseudo-sujeito em «Um A enquanto F é G», também «A enquanto F» é um pseudo-objecto em «Nós estudamos A enquanto F». O objecto desta frase é A, e o verbo é «estudamos enquanto F». Estamos a falar não do estudo de um tipo particular de objecto, mas de um tipo particular de estudo, um estudo que procura tipos particulares de explicações e causas, causas enquanto F. Por exemplo, quando estudamos fisiologia humana, estudamos os homens enquanto animais, ou seja, estudamos as estruturas e funções que os homens têm em comum com os animais. Não existe um objecto que seja um homem enquanto animal, e seria um disparate perguntar se todos os homens, ou se apenas alguns especialmente embrutecidos, serão homens enquanto animais. É igualmente disparatado perguntar se o Ser enquanto Ser significa todos os seres ou apenas alguns seres especialmente divinos.

Contudo, podemos estudar qualquer ser do ponto de vista particular do ser, ou seja, podemos estudá-lo em virtude daquilo que tem em comum com todos os outros seres. Será talvez legítimo pensar que isto é muito pouco: de facto, o próprio Aristóteles afirma que nada possui ser enquanto sua essência ou natureza: não há nada que seja apenas ser e nada mais. Mas estudar algo enquanto um ser é estudar algo sobre o qual é possível fazer predicações verdadeiras, precisamente do ponto de vista da possibilidade de fazer predicações verdadeiras sobre isso. A filosofia primeira de Aristóteles não estuda um tipo particular de ser; estuda tudo, todo o Ser, precisamente enquanto tal.

Ora, a ciência aristotélica é uma ciência de causas, pelo que a ciência do Ser enquanto ser será uma ciência que procura as causas da existência de qualquer verdade acerca de toda e qualquer coisa. Poderão existir tais causas? Não é difícil conferir sentido ao facto de um tipo particular de ser possuir uma causa enquanto ser. Se eu nunca tivesse sido concebido, nunca existiriam quaisquer verdades sobre mim; Aristóteles afirma que se Sócrates nunca tivesse existido, as frases «Sócrates está bem» e «Sócrates não está bem» jamais poderiam ser verdadeiras. Portanto os meus pais, que me deram existência, são as minhas causas enquanto ser. (São também as minhas causas enquanto ser humano.) Tal como os pais deles, e os pais dos pais deles por sua vez, e, em última instância, Adão e Eva, no caso de descendermos todos de um único par. E se algo tivesse dado existência a Adão e Eva, seria essa a causa de todos os seres humanos, enquanto seres.

Posto isto, podemos ver claramente de que modo o Deus cristão, o criador do mundo, pode ser entendido como a causa do Ser enquanto ser — a causa, pela sua própria existência, das verdades sobre si próprio, e, como criador, a causa eficiente da possibilidade de toda e qualquer verdade acerca de toda e qualquer coisa. Mas no sistema de Aristóteles, que não inclui um criador do mundo, qual é a causa do Ser enquanto ser?

No cume da hierarquia aristotélica dos seres estão os motores móveis e imóveis que são as causas finais de toda a geração e corrupção. São assim, de certo modo, as causas de todos os seres perceptíveis e corruptíveis, desde que sejam seres. A ciência que pretenda alcançar o motor imóvel estará a estudar a explicação de toda e qualquer predicação verdadeira e, desse modo, de todo e qualquer ser enquanto ser. Na sua Metafísica, Aristóteles explica que existem três tipos de substâncias: os corpos perecíveis, os corpos eternos e os seres imutáveis. Os dois primeiros tipos pertencem à ciência da natureza, e o terceiro à filosofia. Aquilo que explicar a substância, afirma, explicará todas as coisas, já que sem substâncias não existiriam mudanças activas nem passivas. Aristóteles avança então para a comprovação da existência de um motor imóvel, concluindo que «de tal princípio dependem os céus e a natureza» — ou seja, tanto os corpos eternos como os corpos perecíveis dependem do ser imutável. E este é o divino, o objecto da teologia.

O motor imóvel é anterior às outras substâncias, e estas são anteriores a todos os outros seres. «Anterior» é aqui utilizado não num sentido temporal, mas para denotar dependência: A é anterior a B, se pudermos ter A sem B mas não B sem A. Se não existisse um motor imóvel, não existiriam os céus e a natureza; se não houvesse substâncias, não haveria qualquer outra coisa. Podemos agora entender por que motivo Aristóteles afirmava que aquilo que é anterior possui um poder explicativo mais elevado do que aquilo que é posterior, e por que razão a ciência dos seres divinos, sendo anterior, pode entender-se como a mais universal das ciências: porque lida com seres que são anteriores, isto é, mais recuados na cadeia da dependência. A ciência dos seres divinos é mais universal do que a ciência da física porque explica tanto os seres divinos como os seres naturais; a ciência da física explica apenas os seres naturais e não os seres divinos.

Por fim, conseguimos compreender como se harmonizam as diferentes definições da filosofia primeira. Qualquer ciência pode ser definida pela área que pretende explicar ou por meio da especificação dos princípios pelos quais o explica. A filosofia primeira tem como área de explicação o universal: propõe-se apresentar um tipo de explicação para toda e qualquer coisa e encontrar uma das causas da verdade de toda e qualquer predicação verdadeira. É a ciência do Ser enquanto ser. Mas, se passarmos do explicandum para o explicans, podemos dizer que a filosofia primeira é a ciência do divino; pois aquilo que explica fá-lo por referência ao motor imóvel divino. Não lida apenas com um só tipo de Ser, já que faz a descrição não apenas do próprio divino, mas de tudo o que existe ou é alguma coisa. Mas é, por excelência, a ciência do divino, já que explica tudo por referência ao divino e não, como a física, por referência à natureza. Assim, a teologia e a ciência do Ser enquanto ser são uma e a mesma primeira filosofia.

Somos por vezes levados a pensar que a fase final da compreensão da metafísica aristotélica é uma apreciação da natureza profunda e misteriosa do Ser enquanto Ser. Na verdade, o primeiro passo em direcção a essa compreensão é a tomada de consciência de que o Ser enquanto Ser é um espectro quimérico engendrado por não se prestar atenção à lógica aristotélica.

Anthony Kenny
Resolução - RDC número 7
Quinta histórica para a Medicina Intensiva

A quinta-feira, dia 25 de fevereiro de 2010, vai entrar para a história da AMIB e da medicina intensiva de todo o país, pois nesta data foi publicado no Diário Oficial da União a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) número 7, que dispõe sobre os requisitos mínimos para o funcionamento de Unidades de Terapia Intensiva, visando a redução de riscos aos pacientes, visitantes, profissionais e meio ambiente.

A publicação dessa resolução é uma conquista da AMIB e de todos os profissionais da medicina intensiva, que há anos vinham lutando por esta causa, o que havia até então era uma Portaria 3432, do Ministério da Saúde, que era de 1998 e contemplava, superficialmente, somente as UTIs públicas do país.

Vale lembrar que no mês de maio do ano passado a Comissão de Defesa Profissional da AMIB publicou suas "Recomendações para o Funcionamento das Unidades de Terapia Intensiva", que foram elaboradas a partir das discussões dos Fórum de Defesa Profissional, ocorrido em abril de 2009, e visava estabelecer padrões mínimos para o bom funcionamento das unidades e reduzir riscos e aumentar a segurança de pacientes e profissionais. O documento foi disponibilizado no site da AMIB como forma de pressionar a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) a fazer o mesmo.

Para acessar o documento, clique aqui.

O conteúdo da Resolução da Diretoria Colegiada, publicado no dia 25 de fevereiro, no Diário Oficial da União, é bastante amplo e contempla aspectos técnicos, de equipamentos e recursos humanos e inclui requisitos que devem ser adotados pelas Unidades de Terapia Intensiva Adulto, Pediátrica, Neonatal.

"A publicação desta RDC é, sem dúvida uma grande conquista, pois ainda hoje muitas UTI são abertas no país sem nenhum critério e, com esses requisitos já vamos conseguir melhor, em muito, a assistência e qualidade no atendimento oferecido aos pacientes", afirma o Dr. José Mário Telles, Presidente Futuro da AMIB.

A publicação da RDC também foi comemorada pelo Dr. Álvaro Réa-Neto, Presidente Passado da AMIB. "A publicação da resolução é mais um passo em direção a uma medicina intensiva forte, valorizada e útil para a nossa sociedade", afirmou.

Mas, mesmo sendo abrangente e bastante significativa para a medicina intensiva, a RDC ainda precisará ser melhorada em vários pontos. Um dos que promete gerar muitas discussões é o que diz respeito ao número de Enfermeiros por leito de UTI. A antiga resolução recomendava um profissional para cada 10 leitos, número de leitos considerado alto pelos enfermeiros, que defendem 5 leitos para cada profissional.
A nova RDC recomenda um enfermeiro para oito leitos, número considerado inadequado pela categoria.

"Acho que conseguimos um significativo avanço. Esta resolução está bem melhor que a anterior. Naturalmente que não conseguimos tudo, como o quantitativo de enfermagem e o de médicos de acordo com a gravidade dos doentes, mas muitos outros pontos foram contemplados. Vamos ver o copo meio cheio e continuar o trabalho de aprimoramento, comentou o Dr. Arnaldo Prata, Futuro Diretor Vice-Presidente da AMIB.

Para a Dra. Renata Pietro, Presidente do Departamento de Enfermagem da AMIB, mesmo sendo a RDC uma grande conquista, a luta continua para que mudanças sejam feitas e que a recomendação seja de um enfermeiro para cada cinco leitos.

"Reconhecemos que se trata de uma conquista a publicação da Resolução e que o primeiro passo foi dado, mas um longo caminho ainda precisa ser trilhado para que possamos ter melhores condições de atuação dentro do ambiente da UTI", afirma Renata Pietro.

Para a profissional é válida a afirmação que: Evidências científicas indicam que a instituição que não provê números e condições de trabalho adequados à enfermagem tem taxas mais altas de quedas, úlceras de compressão, erros de medicação, infecções hospitalares, readmissão, aumento no tempo de hospitalização e mortalidade.

Já a Dra. Débora Feijó Vieira, membro do departamento de enfermagem da AMIB, comemora a resolução, mas também defende que o número de leitos por enfermeiro deve ser cinco.

"A RDC ainda não está como nós, intensivistas, gostaríamos, mas, pelo menos, temos agora, uma norma com os padrões mínimos para o funcionamento de uma UTI. Esse é um momento de comemoração pela conquista. A resolução é importantíssima para a medicina intensiva, mas continuaremos a nossa luta pela qualidade assistencial e segurança dos pacientes, não focados somente no ponto de vista da enfermagem, mas de todos os intensivistas, inclusive nos colegas que ainda não estão contemplados nessa RDC. Outros pontos, como os que envolvem equipamentos, também precisam ser melhorados, aponta a Dra. Débora Vieira.

De uma forma geral, médicos intensivistas e enfermeiros concordam que a publicação da RDC é um marco e uma conquista de extrema importância para a atuação dos profissionais e também um norte para a abertura de novos leitos de UTI pelo Brasil. E concordam que esse foi o primeiro passo de muito que precisarão ser dados.

"Foi uma luta para conseguir que a RDC fosse publicada. Agora temos um documento para servir de referência para nossa especialidade. Pode não ter atendido a todas nossas reivindicações, mas continuaremos trabalhando em um grupo permanente para melhorar o documento", afirma o Dr. José Mário Teles.

E o próximo passo rumo às novas conquistas já está definido. "A ANVISA quer a ajuda da AMIB para fazer uma cartilha com as normas para implantação desses requisitos nas UTIs de todo Brasil e vamos ajudá-los nisso. Temos que pensar também em requisitos para o funcionamento das unidades semi-intensivas, que não podem ser deixadas de lado", define o Dr. José Mário.

"Acredito que nosso maior desafio é fazer com que essas normas sema cumpridas. Para isso a ANVISA já está preparando agentes da vigilância sanitária para fazer a fiscalização. A partir de agora todos nós somos responsáveis e devemos denunciar aquelas unidades que não cumprirem as normas da RDC", finaliza o Dr. José Mário.

Para ter acesso à íntegra da RDC número 7, clique aqui.

Para acessar a Instrução Normativa número 4, clique aq

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Folha de S.Paulo - Fé e suspeita em Freud - 30/10/2005

Folha de S.Paulo - Fé e suspeita em Freud - 30/10/2005
Clínica médica/Intensiva/Enfermagem
Tendências da investigação epidemiológica em doenças crônicas
23/04/2006
Cad. Saúde Pública vol.17 no.3 Rio de Janeiro May/June 2001


OPINIÃO OPINION



Gulnar Azevedo Silva Mendonça 1


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Epidemiological research trends in chronic diseases



1 Departamento de Epidemiologia, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier 524, 7o andar, Rio de Janeiro, RJ 20559-900, Brasil. gulnar@uerj.br Abstract Identification of adult risk factors has contributed to a decrease in the occurrence of cardiovascular diseases and some types of cancer, particularly in developed countries. However, the prevailing etiologic model emphasizes risk factors associated with life style and occupational exposures. This emphasis leads to an excessive individualization of risk, weakening the link between epidemiology and public health. This article comments on the opinions of epidemiologists concerning the failures, limitations, and evolution of modern epidemiology that have helped redirect the field's theoretical underpinnings. Alternatives to the current model tend to integrate findings from molecular biology with classic risk factors and early adverse conditions in life, taking into account all these causal influences in hierarchical levels of organization. The author identifies and comments on three important approaches in this evolution: molecular epidemiology, the theory of early life factors, and multilevel models.
Key words Chronic Disease; Molecular Epidemiology; Risk Factors

Resumo A identificação de vários fatores de risco da vida adulta contribuiu, sobretudo nos países desenvolvidos, para a diminuição da ocorrência de doenças cardiovasculares e de alguns tipos de câncer. O modelo etiológico mais adotado enfatiza no entanto, os fatores de risco relacionados ao estilo de vida e às exposições ocupacionais. Esta ênfase vem levando a uma excessiva individualização do risco, com um conseqüente enfraquecimento do vínculo da epidemiologia com a saúde pública. São comentadas neste artigo as opiniões de epidemiologistas que fazem uma reflexão sobre as falhas, os limites e os desdobramentos da epidemiologia moderna que têm contribuído para uma reorientação teórica da disciplina. Identifica-se assim, que as alternativas ao modelo atual devem buscar uma integração entre os achados de biologia molecular com os fatores de risco classicamente concebidos e com condições adversas em etapas precoces da vida, considerando todas estas influências causais em níveis hierarquizados de organização. São destacadas e comentadas três importantes vertentes neste processo de evolução: a epidemiologia molecular, a teoria dos eventos precoces na vida e os modelos multinível.
Palavras-chave Doença Crônica; Epidemiologia Molecular; Fatores de Risco




Introdução


A epidemiologia foi fundamental no controle das doenças infecciosas e na descoberta de muitos fatores associados a vários tipos de câncer, à doenças cardiovasculares e a outras doenças crônicas. Até a primeira metade do século XX, os fatores mais importantes relacionados às doenças infecciosas como a cólera, a malária e mesmo a algumas crônicas (escorbuto e pelagra) eram de natureza macro-ambiental e a prevenção dependia de medidas coletivas de saúde pública, que englobavam atuação de outros profissionais não-médicos como engenheiros, químicos, entomologistas, planejadores (Adami & Trichopoulos, 1999). O grande desenvolvimento metodológico da epidemiologia, após a segunda guerra mundial, possibilitou a identificação de fatores envolvidos na etiologia de muitas enfermidades crônicas e a ênfase da epidemiologia se voltou para o micro-ambiente onde prevaleceu a investigação de fatores de risco da vida adulta. O estudos de Doll & Hill, Wynder & Graham, os quais tiveram suas primeiras publicações no início da década de 50, foram importantes para o declínio do tabagismo e das doenças associadas ao fumo (Peto, 1999). A partir daí, a epidemiologia na tentativa de explicar a etiologia das doenças crônicas, vem se concentrando na medida de risco de um largo espectro de fatores associados ao estilo de vida e a exposições ocupacionais.

O enfoque centrado no indivíduo tem favorecido uma aproximação maior da epidemiologia à clínica, com um conseqüente afastamento da saúde pública, passagem que não tem acontecido silenciosamente. Os questionamentos sobre os limites e o futuro da epidemiologia moderna são cada vez mais freqüentes entre epidemiologistas. Há os que consideram que esta discussão reflete em parte, a crise de paradigma por que passa a epidemiologia (Barreto, 1998; Schwartz et al., 1999; Susser & Susser, 1996b). As possibilidades de novos conhecimentos sobre fatores de risco com associação forte e alta especificidade não vêm acontecendo (Barreto, 1998) e, mesmo que existam conhecimentos disponíveis, a avaliação dos resultados de intervenções tem se mostrado em geral, insuficiente (Susser, 1995).

De certa forma, o que se percebe dentro do debate sobre os rumos da epidemiologia, presente nos periódicos da área, é de que não se trata de uma crise aguda nem irremediável, mas sim de um processo decorrente da própria evolução da disciplina e da saúde pública, onde os argumentos se baseiam na percepção de que existe uma inquietação na tentativa de encontrar caminhos que venham a contribuir de forma mais efetiva na compreensão sobre o processo saúde/doença.



Evolução da investigação epidemiológica


Susser & Susser (1996a, 1996b) analisam a evolução da epidemiologia moderna através de três eras, considerando que cada uma delas teria um paradigma dominante característico que seria responsável pela definição da abordagem preventiva de cada era. Assim, a primeira foi representada pelas estatísticas sanitárias que teve como paradigma o miasma. Na segunda estaria a epidemiologia das doenças infecciosas trazendo a teoria do germe como paradigma dominante. A terceira era, a atual, é caracterizada pela epidemiologia das doenças crônicas que teria como paradigma a caixa preta, que simboliza o paradigma da epidemiologia dos fatores de risco para as doenças crônicas. Para os autores, nas duas primeiras eras a saúde pública teria papel central, mas na era presente a ênfase dada à saúde pública estaria mais tênue. Prevêem ainda os autores um futuro fechamento desta terceira era, que daria lugar a uma nova etapa marcada pela eco-epidemiologia, onde o desdobramento em um paradigma diferente se tornará essencial. Este paradigma estaria se formando dentro dos limites de muitos níveis de organização (molecular, social e individual) e por isso seria denominado de "caixas chinesas" que integrariam mais de um simples nível no desenho, análise e interpretação. Este paradigma poderia sustentar e refinar a orientação da epidemiologia para a saúde pública.

Dois anos mais tarde, Susser (1998) volta a se referir ao atual paradigma da caixa preta, considerando que sua evolução estaria sendo menos proveitosa e gradativamente substituída pelo crescimento das epidemiologias molecular e global baseado nos sistemas de informação. Esta dicotomia poderia dividir a epidemiologia em duas distintas disciplinas, ao mesmo tempo em que o interesse pela saúde pública estaria se enfraquecendo. Para Susser, a eco-epidemiologia teria o potencial de juntar estas duas vertentes.

Alguns autores são pessimistas em relação ao papel que a epidmiologia vem exercendo. Shy (1997) considera que a epidemiologia acadêmica falhou em desenvolver os métodos científicos e a base de conhecimento para prevenir doenças e promover a saúde através de esforços organizados da comunidade, o que seria sua missão fundamental dentro da saúde pública; a epidemiologia acadêmica estaria cometendo a falácia biomédica, que seria inferir que a doença nas populações pode ser entendida pelo estudo dos fatores de risco em indivíduos. Esta abordagem centrada no indivíduo não tem respondido muitas questões que não são determinadas apenas no nível individual, mas que têm uma grande interdependência com fatores sociais, culturais, econômicos e ambientais. Em termos preventivos o enfoque individualizado leva à culpabilização da vítima e pode produzir intervenções nocivas (Pearce, 1996).

Em contraposição ao suposto argumento de estagnação da epidemiologia dos fatores de risco, Trichopoulos (1996) mostra exemplos de recentes avanços na epidemiologia cardiovascular como a elucidação do papel dos lipídios sangüíneos, a documentação dos efeitos da aspirina, do etanol, da homocisteína e outros. Na área do câncer, foi também recente a caracterização dos vírus B e C da hepatite e de certas cepas de papilomavírus como definitivos carcinógenos. Outro exemplo seria o da proteção dada por consumo de frutas e vegetais para vários tipos de câncer, que só foi totalmente aceita nos últimos vinte anos. Encara o autor portanto, o futuro da epidemiologia de uma forma mais otimista com argumentos favoráveis que se anunciam: 1) aumento na ênfase da especificidade através de grandes estudos que permitirão a distinção entre resultados falsos e verdadeiros; 2) a epidemioloiga clínica deve melhorar a forma como a medicina e os serviços de saúde são definidos, implementados e avaliados; 3) a descoberta de genes que predispõem a doenças exigirá a urgente identificação de fatores exógenos que interajam com estes genes, levando ao aparecimento de doenças na espécie humana; e 4) conceitos que se aprimoram, como por exemplo ênfase nos eventos precoces de vida, podem enriquecer o futuro da pesquisa epidemiológica e os desdobramentos teóricos podem contribuir na elucidação de grandes enigmas, como as diferenças inexplicáveis entre morbidade e mortalidade entre grupos sócio-econômicos.

É inegável que o advento de novas técnicas e a crescente identificação de genes, aumentou de forma exponencial a pesquisa sobre a genética das doenças e de seus mecanismos moleculares. Segundo Diez-Roux (1998a) a epidemiologia hoje pode estar de fato, à beira de um novo paradigma, o genético. Os genes recentemente descobertos são tidos como importantes fatores de risco para doenças, mas também de comportamento como atividade física (Perusse et al., 1989) e características psicossociais (Kendler, 1997). No entanto, ao mesmo tempo parece que vem ressurgindo o interesse sobre a origem social das doenças, a se medir pelo aumento de publicações que avaliam as diferenças na saúde relacionadas às classes sociais. As explicações sociais têm competido com outras que enfatizam os comportamentos pessoais e biológicos e, talvez hoje o contraste entre estes níveis de explicação tenha se tornado mais evidente do que nunca (Diez-Roux, 1998a).



Tendências atuais


Dentro da progressiva individualização do risco, as influências ambientais e sociais são pouco consideradas ou ficam geralmente, em segundo plano. O estilo de vida e o comportamento são encarados como escolha individual dissociados do contexto social. O processo de causalidade das doenças não é uma propriedade de agentes, mas de sistemas complexos ocorrendo dentro do contexto populacional. A constatação de que os fatores de risco clássicos só explicam parcialmente as desigualdades sociais e geográficas da distribuição das doenças crônicas, tem levado a um crescente investimento em marcadores genéticos, em outros fatores de ordem psicossocial e ambiental da vida adulta, na análise do consumo alimentar e de diversos fatores pré-natais e da infância. Nesse sentido é aqui pertinente destacar três marcantes vertentes que se colocam como importantes tendências na evolução da pesquisa epidemiológica sobre causalidade de doenças crônicas: a epidemiologia molecular, a teoria dos eventos precoces na vida e os modelos multinível.



Epidemiologia molecular


No ponto de vista dos epidemiologistas, "epidemiologia bioquímica ou molecular" é a incorporação de biomarcadores na pesquisa epidemiológica analítica (Hulka et al., 1990). Após a revolução da biologia molecular foi possível identificar biomarcadores em níveis moleculares, e esta precisão permite o desenvolvimento de modelos de compreensão da causalidade das doenças. O avanço da biologia molecular aumentou muito o conhecimento sobre as doenças genéticas, incluindo o mapeamento de genes responsáveis pela herança mendeliana, como por exemplo os da fibrose cística. Desenvolveu ainda, modelos de predição de doenças como os mecanismos de múltiplos estágios da carcinogênese, tornando claro que as neoplasias malignas geralmente aparecem por causa de acumulações em série de danos a genes em uma única célula (Ellsworth et al., 1997).

A velocidade crescente de produção de conhecimento sobre a etiologia das doenças em biologia molecular, requer dos epidemiologistas um enorme esforço para compreender as possibilidades e limitações dos métodos e técnicas (Adami & Trichopoulos, 1999). Segundo Susser (1999) a biologia molecular hoje por ser considerada inquestionável, definitiva e específica traz a mesma ilusão da teoria do germe: a capacidade de explicar tudo. Na verdade as explicações hoje disponíveis são ainda limitadas para comprovar a causalidade de grande parte das doenças crônicas. A viabilidade e aplicabilidade de estudos epidemiológicos incorporando dados de biologia molecular, ainda são questionáveis porque dependem de técnicas que muitas vezes não permitem a inclusão de um número grande de indivíduos, o que torna complicado inferir resultados a partir de dados observados (Hulka et al., 1990). Além do que, os achados em epidemiologia se tornam mais consistentes quando se repetem em outros estudos e conduzidos em grupos diferentes de população.

Para os que defendem a idéia de que o futuro progresso da pesquisa epidemiológica se daria por conta da elucidação dos mecanismos biológicos, a soma de conhecimentos poria fim à epidemiologia da caixa preta (Savitz, 1994). Ao se encampar a biologia como disciplina preponderante na comprovação das relações causais em epidemiologia, pode levar ao erro de reduzir o espectro de compreensão mais global do processo causal. A evidência biológica como fonte de hipóteses epidemiológicas pode enfraquecer as hipóteses geradas pelos dados descritivos, pela intuição ou observação clínica (Savitz, 1994). Os estudos epidemiológicos são certamente, viáveis mesmo que os mecanismos não sejam compreendidos em parte ou em sua totalidade. Certas situações de risco ou proteção são muitas vezes difíceis de serem simuladas em laboratório, embora possam ter grande importância para a saúde pública.



Teoria dos eventos precoces na vida


Embora existindo a hipótese de que a riqueza material aumentaria o risco de doenças cardiovasculares, foi observado na Inglaterra que estas doenças eram mais comuns entre indivíduos mais pobres. Partindo deste paradoxo várias pesquisas passaram a relacionar a privação na infância, e não a riqueza, com o aparecimento de doenças crônicas. Foram analisadas assim, condições ambientais e experiências durante a adolescência, infância, primeiro ano de vida e pré-natal associadas à pobreza que poderiam tornar indivíduos mais suscetíveis a estas doenças, independente ou em combinação com fatores da vida adulta (Kuh & Ben-Sholomo, 1997). Diversos estudos mostraram associações entre fatores pré e perinatais e risco de doenças cardiovasculares, bronquite crônica, disfunções tiroidianas, alergias, câncer de estômago, suicídio e aparecimento de fatores de risco na vida adulta (aumento de pressão sangüínea, intolerância à glicose, hipercolesterolemia, obesidade, etc.).

Com base em séries de coortes históricas e extrapolando resultados de estudos em animais, Barker (1990) propôs que a doença crônica seria biologicamente programada no útero ou no início do primeiro ano de vida e denominou "programming" o processo em que o estímulo ou a agressão, em períodos críticos de desenvolvimento, teria repercussão na estrutura ou na função de órgãos, tecidos e sistemas orgânicos. No caso da doença coronariana por exemplo, a hipótese sugerida é de que a subnutrição fetal na metade ou no final da gestação levaria ao retardo do crescimento intra útero, aumentando o risco de doença futura pela programação de pressão arterial, do metabolismo de colesterol e da coagulação sangüínea ou por um processo hormonal (Barker, 1995).

Muitos estudos fortaleceram a hipótese do programming, na qual geralmente o baixo peso ao nascer se associa ao risco aumentado de doença cardiovascular, e o sobrepeso, ao risco de câncer de mama e outros cânceres. Estes estudos receberam porém, muitas críticas. Joseph & Kramer (1996) foram contundentes ao afirmar que várias apreciações diretas ou indiretas desta evidência, sugeriam que as associações encontradas eram mais devidas a viéses do que a uma relação causal. Entre as falhas, apontaram que os estudos eram acometidos por viés de seleção, não controlavam de forma adequada o confundimento gerado pelas conseqüências da privação social na saúde, além de terem inconsistências nas hipóteses testadas e nos métodos de análise.

Robson (1992) no entanto, defende que o grupo de trabalho que sustenta a hipótese de programming avançou rapidamente partindo dos estudos ecológicos para os individuais, oferecendo evidência para a hipótese em relação a importantes variáveis fisiológicas e bioquímicas, o que pode estabelecer a existência de relações específicas entre a experiência precoce e doenças ou modificações fisiológicas tardias. O desenvolvimento de estudos individuais e a incorporação de resultados de estudos experimentais para a avaliação desta hipótese, foi importante por que permitiu o controle de fatores de confundimento, o que não era feito nos estudos iniciais. Isto pôde ser observado tanto nos estudos ecológicos, onde por exemplo o acidente vascular cerebral se correlaciona com mortalidade materna e neonatal, a bronquite crônica com mortalidade pós-neonatal e a doença isquêmica do coração com mortalidade neonatal e pós-neonatal; como nos estudos individuais, quando se observou que o crescimento fetal ou neonatal está relacionado à hipertensão arterial, intolerância à glicose e ao aumento de colesterol e fibrinogênio (Barker et al., 1989, 1990, 1992).

Kuh & Ben-Shlomo (1997) oferecem uma proposta que seria complementar à hipótese de Barker e colaboradores, considerando que são importantes não apenas os estímulos ou agressões ocorridos na vida intra-uterina ou no primeiro ano de vida, mas sim a acumulação de riscos durante o curso da vida. Esta concepção de risco seria diferente do programming por que não requer a existência de período crítico, ou seja, alguma condição desfavorável que tenha ocorrido em momentos específicos na vida intra-uterina ou na infância precoce. Mais ênfase é dada a uma variedade de experiências biológicas e sociais na infância, adolescência e na vida adulta precoce, do que no estilo de vida e nos modelos programming. Como exemplo mostram que o baixo peso ao nascer está associado à alta pressão sangüínea e à resistência à insulina na vida adulta, mas recentemente, foi sugerido que esta relação é mais forte entre homens e mulheres que têm sobrepeso. Isto levanta a hipótese de que fatores relacionados ao sobrepeso ao longo da vida podem potencializar o risco.

Estudo recente fortalece a teoria do programming com base em dados de larga escala, oferecendo evidência consistente para a hipótese de relação entre eventos precoces no período gestacional e doença isquêmica do coração (Leon et al., 1998). Em coorte de 15.000 homens e mulheres nascidos entre 1915-29, acompanhados até 1995, a mortalidade por doenças cardiovasculares se associou ao tamanho ao nascer por idade gestacional em homens, mesmo após controle por confundimento sócio-econômico. Nesta mesma linha, no Brasil, Barros & Victora (1999) encontraram após seguimento de quinze anos da coorte dos 6.000 recém-nascidos em Pelotas, relação inversa, estatisticamente significativa, entre peso ao nascer por idade gestacional e pressão sangüínea após controle por índice de massa corporal e altura.



Modelos multinível


O desenvolvimento de modelos multinível tem viabilizado a análise de estudos que integrem indivíduos, dentro de seus grupos ou contextos sociais, examinando os efeitos combinados tanto das variáveis individuais como das de grupos. Esta nova abordagem não tem o objetivo de substituir, mas de complementar e enriquecer o enfoque hoje dominante, indo além das explicações individuais e biológicas (Diez-Roux, 1998b). Nos modelos multinível as variáveis se estruturam na população de forma hierárquica e os dados amostrais são tratados como exemplos de múltiplos estágios dentro desta estrutura hierarquizada (Hox, 1995).

As variáveis de exposição utilizadas podem ser definidas em qualquer nível da hierarquia sendo que algumas podem ser medidas diretamente no seu estágio natural, podendo passar de um para outro por agregação ou desagregação. Por exemplo, o indicador sócio-econômico pode ser medido individualmente (escolaridade, renda per capita) e aí seria considerado uma variável de primeiro nível, medida diretamente no indivíduo e portanto desagregada. Pode-se porém, definir que este indicador será medido no estágio intermediário e aí seriam escolhidas variáveis de segundo nível ou contextuais para indicar o status sócio-econômico, por exemplo: percentual de analfabetos, número de favelas, de estabelecimentos bancários do bairro onde mora cada indivíduo incluído no estudo, etc., o que significa que todos os que moram no mesmo bairro teriam o mesmo valor para esta variável, que seria assim uma agregada. É importante lembrar que nestes modelos, onde variáveis de exposição são consideradas em diversos estágios, os desfechos analisados são sempre considerados no nível primário ou do indivíduo.

Os modelos de regressão tradicionais partem do princípio de que as pessoas estudadas são independentes entre si em relação ao desfecho; todas as variáveis são tratadas como sendo do mesmo estágio hierárquico. Ignorar o papel delas no nível macro pode levar a uma compreensão incompleta dos determinantes das doença nos indivíduos e nas populações (Diez-Roux, 1998b; Victora et al., 1997). As variáveis de grupo ou macro afetam os indivíduos diretamente ou forçam as escolhas feitas por cada um; muitas variáveis medidas individualmente são fortemente condicionadas por processos sociais operando nos níveis de grupos sociais ou sociedades. Quando os dados são estruturados em hierarquias, unidades no mesmo grupo raramente são independentes porque compartilham de um mesmo ambiente e apresentam características semelhantes.

Susser (1994) denominou de mistos os estudos que investigavam efeitos de variáveis independentes ecológicas com as dependentes de nível individual. A incorporação de variáveis de nível de grupo nos modelos de análise, permite que sejam extraídas informações impossíveis de serem obtidas apenas no estágio individual (Diez-Roux, 1998b): por exemplo, a probabilidade de se adotar certo comportamento depende em parte, do grau que este comportamento já foi adotado na comunidade. A análise multinível, junto com outras estratégias e desenhos de estudo, pode contribuir para fortalecer e revitalizar a investigação dos determinantes sociais e coletivos da saúde. Uma boa ilustração disto é o estudo que investigou, por meio de modelos multinível, os efeitos do contexto de vizinhança na prevalência de fatores de risco para doença cardíaca coronariana, em quatro comunidades dos Estados Unidos (Diez-Roux et al., 1997). Os resultados mostraram que a variável escolhida para o nível de grupo (bairros) explicaram as associações encontradas: pessoas que moravam em locais precários tiveram risco aumentado de doença cardíaca coronariana, de risco, de hipertensão arterial e de hipercolesterolemia, após ajustamento por indicadores individuais de nível sócio-econômico.

Nos últimos anos percebe-se uma forte tendência de incorporar, dentro de novas linhas de pesquisas ou mesmo em outras em andamento, modelos que consideram os diversos níveis na rede de causalidade (por exemplo: molecular, individual e social), levando a um paradigma que reforça o pensamento sobre causas em níveis múltiplos de organização, dentro de um contexto histórico tanto de sociedades como de indivíduos (Schwartz et al., 1999). Neste sentido os modelos multinível exerceriam um papel que extrapola a técnica estatística de análise, mas que pressupõe uma concepção ou mesmo uma tendência de trabalhar de forma mais dinâmica com o conceito de causalidade. Neste sentido os modelos multinível estariam de fato representando a proposta da eco-epidemiologia multinível proposta por Susser (1998), que teria o potencial de juntar as epidemiologias molecular e global baseado nos sistemas de informação.



Conclusões


O grande crescimento do conhecimento tecnológico e metodológico dos últimos tempos tem reorientando as práticas de investigação epidemiológica, sobretudo no campo das doenças crônicas. Para alguns tipos de câncer, muito do que se conhece hoje a respeito de fatores de risco (dieta e câncer de cólon, vírus da hepatite B e hepatoma, papilomavírus humano e câncer de colo uterino) foi levantado a partir de comparações internacionais de incidência, entre os anos 50 e 60, e nem sempre as hipóteses eram coerentes com o conhecimento biológico existente na época. Em alguns tipos de câncer ocupacional, como aqueles associados ao benzeno e arsênico, houve uma grande lacuna de tempo para que os achados epidemiológicos fossem confirmados em laboratório (Pearce, 1999). No caso de fumo e câncer de pulmão, por mais de quarenta anos não foi possível estabelecer analogia direta entre os experimentos com animais e os importantes resultados dos estudos epidemiológicos (Susser & Susser, 1998).

O que acontece atualmente, no entanto, é que os epidemiologistas estão diante de situações diferentes destas. Devido a rapidez com que vem se desenvolvendo a biologia molecular, a elucidação dos mecanismos causais das doenças crônicas que dependem da identificação e quantificação das interações entre os fatores genéticos e exposições ambientais, tende a ser cada vez mais complexa levando a interpretações imprecisas e nem sempre satisfatórias. Será necessário um esforço cada vez maior de integração dos profissionais das diversas áreas (clínica, biologia, epidemiologia e ciências sociais) para que os achados no nível molecular sejam validados por estudos dentro do contexto populacional. Neste sentido, contribuições com diferentes concepções (estudos centrados no nível individual, molecular associados a outros que incorporem variáveis contextuais relacionadas a fatores que afetam grupos de indivíduos ou populações), bem como a utilização de diversas metodologias, que podem englobar tanto análises qualitativas quanto modelos matemáticos mais complexos, podem ser, a princípio, relevantes desde que trabalhados no sentido de se constituírem como elementos a serem recambiados em novas hipóteses e explicações.



Agradecimentos


À Rosely Sichieri, Sergio Koifman e Victor Wünsch Filho por me incentivarem a publicar estas reflexões. À Dina Czeresnia pelas valiosas críticas e sugestões.



Referências


ADAMI, H. O. & TRICHOPOULOS, D., 1999. Epidemiology medicine and public health. International Journal of Epidemiology, 28:S1005-S1008.
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BARKER, D. J., 1990. The fetal and infant origins of adult disease. BMJ, 301:1111.

BARKER, D. J., 1995. Fetal origins of coronary heart disease. BMJ, 311:171-174.
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BARKER, D. J.; BULL, A. R.; OSMOND, C. & SIMMONDS, S. J., 1990. Fetal and placental size and risk of hypertension in adult life. BMJ, 301:259-262.
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BARKER, D. J.; MEADE

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Bioética: novos rumos do
periódico científico do CFM








A revista Bioética, publicada pelo Conselho Federal de Medicina desde 1992, foi o periódico científico pioneiro nesse campo de estudo e pesquisa no Brasil – cuja criação ocorreu seis anos após a criação da Bioethics, a mais consolidada revista, na área, em nível mundial, publicada pela International Association of Bioethics (IAB).

Sua importância para a divulgação e consolidação da disciplina pode ser dimensionada pelo fato de que a própria Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) só foi fundada em 1995 e seu veículo editorial oficial, a Revista Brasileira de Bioética (RBB), começou a ser editado apenas em 2004.

No encontro que marca a criação da Bioética estão registradas as presenças de reconhecidos bioeticistas brasileiros, alguns dos quais ainda integram o Conselho Editorial. O apoio desses renomados pesquisadores e de outros que posteriormente vieram somar esforços para a consolidação do periódico foi fundamental para que, em 1999, a Bioética passasse a ser indexada na base de dados Lilacs. Atualmente, é classificada pela Capes como “B” nacional nas áreas de Educação Física, Enfermagem, Medicina II, Saúde Coletiva, Serviço Social e “C” nacional na Filosofia/Teologia, Medicina I e Multidisciplinar.

As centenas de artigos publicados durante os seus 15 anos de existência atestam as transformações ocorridas, refletindo o surgimento das preocupações relativas à ética social em bioética e o aprofundamento dessas questões nas práticas de saúde. Congregando colaborações de autores de diversas instituições, profissões e regiões do país e do exterior, a Bioética reflete a pluralidade do panorama que caracteriza o campo. É possível constatar em suas páginas essas perspectivas distintas, sempre respaldadas em reflexões consistentes e ponderadas.

Nesse ínterim, o periódico aprimorou, também, o seu processo editorial, adotando os critérios normativos e de apresentação propostos pela Bireme. Os dois projetos gráficos de apresentação da revista espelham tal esforço, demonstrando o empenho contínuo do CFM para consolidar a qualidade do periódico. Assim, quer por seu conteúdo exemplar quer por seu aspecto gráfico primoroso, a Bioética é, atualmente, a publicação, em seu campo, de maior reconhecimento no país, com influência em toda a América Latina.

Seu papel na consolidação da disciplina é forte incentivo para que continue a estabelecer um processo editorial pautado pela excelência. Buscando aumentar a eficiência no controle da comunicação, garantir transparência e agilidade, fomentar a credibilidade e, assim, despertar o interesse dos pesquisadores e autores, a Bioética inova mais uma vez, delineando novos rumos.

Dentre as providências para atingir esse objetivo destacam-se as voltadas ao aumento da periodicidade, que passará a ser trimestral, bem como da quantidade de artigos por número – que, pretende-se, passem de 11 para 15, perfazendo 60 trabalhos publicados anualmente. Além disso, em cada artigo passará a ser identificada a data de recebimento e aprovação, medida que reforça a transparência do processo editorial.

Essas alterações, no entanto, não implicam mudar o que está consolidado como marca de qualidade do periódico. A submissão de todos os artigos recebidos ao exame dos pares permanecerá como norma inviolável para garantir

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aos autores e à comunidade científica a qualidade do material publicado. Também será mantida a tiragem de 10.000 exemplares, que continuarão a ser gratuitamente distribuídos a médicos, entidades médicas, bibliotecas e instituições de ensino.

Da mesma maneira, o acesso eletrônico à Bioética por meio do Portal do CFM – em http://www.portalmedico.org.br/novoportal/index5.asp – continuará permitindo o acesso irrestrito ao material publicado e às normas editoriais. Por fim, o e-mail da revista – bioética@cfm.org.br – seguirá recebendo os artigos destinados à publicação, no intuito de facilitar o envio dos trabalhos.

A história da revista Bioética reproduz a trajetória da construção do conhecimento no campo da bioética. Hoje, ao se falar em bioética a primeira coisa que vem à mente são as pesquisas sobre reprodução assistida, clonagem e organismos geneticamente modificados – ou, como são mais conhecidos, transgênicos. Essas novas técnicas e tecnologias, que marcam a imaginação quase como ficção científica, são divulgadas com insistência nos meios de comunicação e associadas diretamente à bioética. Contudo, esse aspecto fantástico relacionado aos avanços da ciência não resume o que o campo discute atualmente. Incorporando a esses tópicos uma vasta gama de temáticas, associadas não apenas à recuperação da saúde, mas à qualidade de vida de diferentes grupos populacionais, a bioética vem ampliando o debate sobre os aspectos morais e éticos que envolvem o processo saúde-doença, estendendo-o da prática clínica à dimensão social.

A identificação da bioética como forma de reflexão ou instrumento de regulação dos parâmetros éticos para as ciências da vida está alicerçada no surgimento desse campo de estudo e pesquisa na década de 70. Voltado à discussão dos problemas éticos decorrentes do uso de novas tecnologias, a bioética relacionava - se, principalmente, à pesquisa envolvendo seres humanos.

Sob o marco da bioética principialista, cunhada no período, foi introduzida a prática de informar e consultar o sujeito de pesquisa sobre os procedimentos aos quais estaria submetido ao participar de um experimento. Como decorrência do fato de grande parte da pesquisa em saúde ser realizada a partir da clínica, essa prática consolidou-se também na relação médicopaciente, entre profissionais e usuários dos serviços de saúde, inovando os princípios da deontologia e trazendo à tona a discussão sobre a autonomia do paciente.

Se o foco na tecnologia desenvolvida na área da saúde e, de maneira menos acentuada, no impacto ambiental decorrente do desenvolvimento ajudou a divulgar e consolidar a bioética, associando-a às novas tecnologias, acabou, também, por tornar-se uma perspectiva restrita. Tais debates passavam ao largo das situações cotidianas vivenciadas pela maioria dos profissionais de saúde, especialmente em países como o Brasil, nos quais a assistência à população ainda se revela precária. Somadas às dificuldades no acesso aos serviços, à pobreza, à exclusão e à desigualdade social fomentam o adoecimento da população, em escala maciça e de forma crônica.




Diante de tal quadro social a decisão de informar o paciente sobre as circunstâncias de seu adoecimento – descrevendo minuciosamente o diagnóstico, terapêutica e prognóstico e respeitando o seu direito de decisão sobre o assunto – não respondia a todas as necessidades éticas dos profissionais que, a cada dia, deparavam-se com verdadeiras tragédias, decorrentes da situação de vida das pessoas que atendiam. Ainda que buscassem, com rigor, preservar na clínica a autonomia dos pacientes, restava-lhes a angústia frente aos conflitos derivados daquelas condições insalubres, ante as quais muitos se sentiam impotentes ou desestimulados.

Para responder a tais impasses e formular parâmetros compatíveis com a realidade vivida pela maioria da população, bem como pelos profissionais e pesquisadores que com ela trabalham, os estudiosos da bioética voltaram seu olhar na direção da sociedade: às mazelas sociais e ambientais que causam impacto no cotidiano, roubando a saúde e aviltando a qualidade de vida. Consoante à perspectiva anteriormente traçada pela saúde pública e pela epidemiologia, começaram a ampliar a discussão sobre a ética em saúde, alargando o espectro de atuação da bioética e trazendo à baila questões morais latentes. Dentre essas, as discussões sobre a iniqüidade no acesso aos serviços de saúde, as dificuldades no provimento desses serviços em situação de escassez de recursos e, ainda, a reflexão sobre as moralidades que condicionam essas desigualdades entre os diversos grupos e segmentos da sociedade. Nesse sentido é importante destacar o papel decisivo da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, promulgada pela Unesco em 2005, que constitui marco fundamental dessa nova dimensão da bioética, pois reafirma a importância do respeito aos direitos humanos como condição essencial à saúde e cidadania dos povos.

E é exatamente para abraçar o desafio de produzir uma reflexão que ofereça respostas efetivas aos conflitos e questionamentos sobre a ética em saúde que a Bioética inicia nova etapa de trabalho. Por isso, os editores da revista, bem como seu Conselho Editorial, conclamam os médicos e demais profissionais da área a contribuir para essa discussão, enviando artigos. Ao transformar suas percepções sobre o trabalho cotidiano e o contexto no qual este se insere em reflexão bioética, ampliarão ainda mais a discussão sobre a ética em saúde.

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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O psicólogo na UTI: reflexões sobre a saúde, vida e morte nossa de cada dia





Eliane Caldas do Nascimento Oliveira*

Hospital Central do Exército

Endereço para correspondência






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RESUMO

O texto visa a investigar a constituição de noções de saúde, vida e morte por meio das práticas nas Unidades de Tratamento Intensivo, a partir da presença de um psicólogo. Como fundamentação teórica para reflexão, foram utilizadas referências da Antropologia, História e Psicanálise. A partir das observações e das experiências dos médicos, psicólogos e pacientes, verificou-se uma série de significações e saberes articulados na constituição das práticas para se manterem vivos os pacientes nas UTIs. As situações limite nessas unidades imprimem uma marca em quem ali passa, percebendo-se uma subjetividade vivida pelos indivíduos em suas experiências particulares.

Palavras-chave: UTI, Saúde, Subjetividade.


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ABSTRACT

In this work the notions of health, life and death were investigated through the practices of Intensive Care Units (ICUs). As a theoretical basis, references from Anthropology, History and Psychoanalysis were used. Based on the observations and the experiences of the medical doctors, psychologists and patients, it was noted that a series of understandings and interpretations are employed in forming the practices of maintaining patients alive in the ICU. The extreme situations experienced in these centres mark those who pass through them, and one notes a subjectivity in each one’s personal experience.

Keywords: ICU, Health, Subjetctivity.


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As idéias apresentadas neste ensaio são frutos da dissertação de Mestrado em Psicologia e Práticas Sócioculturais, realizada no período de 1995-1998 (Oliveira, 1998). Certamente, marcadas por outras críticas, reflexões, encontros e desencontros.

Algumas noções escapam à ciência: beleza, compaixão, dor, por exemplo. As teorias científicas quase nada podem esclarecer a respeito delas. E sobre vida, saúde e morte, será possível falar cientificamente?

O que é viver? O que é sobreviver? O que é viver após passar em uma Unidade de Tratamento Intensivo (de agora em diante UTI), por uma situação limite, entre a vida e a morte? Aqui, o campo delimitado para se pensar nessas questões será o da saúde, porque foi observando e participando das práticas intensivistas1 que as perguntas surgiram.

Estudar singularidade e subjetividade frente à saúde, colocando em jogo a capacidade humana de enfrentar ameaças, é tarefa difícil. Antes, é preciso admitir a possibilidade de objetivar a singularidade e a subjetividade. Quando assim se faz, há problemas a enfrentar. O primeiro é definir singularidade.

Para se buscar tal definição, voltar-se-á às práticas intensivistas. Na UTI tudo é muito urgente e grave. Decat de Moura (1996:10), ao tratar a singularidade nesse espaço, assim escreve: “Na urgência, o sujeito é lançado no estado inicial de desamparo, estado que pode repetir-se em qualquer momento de vida, revelando a precariedade da condição humana. O mundo do humano é estruturado em palavras e no mundo simbólico da linguagem, enquanto seres falantes, os homens são iguais. Sua "singularidade" se coloca no campo do objeto. Singularidade “sublime” que confere ao TRIEB uma satisfação diferente do seu alvo “natural”.

Para melhor esclarecer que singularidade está relacionada com o objeto, recorda-se que o bebê, quando se vê frente ao seu “primeiro desamparo”, ainda enquanto infans, vai em busca de um objeto para se satisfazer.

Freud (1900, 1905, 1925), ao escrever sobre vivência de satisfação, postula uma experiência originária, apaziguadora das tensões inevitáveis do organismo, a que o bebê muito pequeno é submetido. O apaziguamento é obtido graças a uma intervenção exterior criada pela necessidade. A satisfação, segundo o autor citado, passa a ser ligada à imagem do objeto que a propiciou. Quando retorna o estado de tensão, a imagem do objeto é reinvestida, produzindo-se uma alucinação do objeto que lhe falta - leite, seio, mamadeira, voz, olhar. Winnicott (1988) evidencia que o lactente, nesse estágio, a dependência absoluta, necessita de holding. A provisão ambiental - a mãe suficientemente boa - possibilitará ao bebê ter a ilusão de que o seio da mãe é parte dele. Assim, desenvolve-se no bebê um objeto subjetivo. Considerando-se esse desamparo e a ilusão que o supera, como estrutural e estruturante, é possível compreender que a estrutura humana é, pois, uma ficção, e a singularidade nessa estrutura está inserida, sendo a existência humana, como escreve Castiel (1994), um drama, uma luta para se chegar a ser o que se deve ser.

E subjetividade, do que se trata? No primeiro momento, encontrou-se uma definição satisfatória em Guattari. Em geral, em Psicologia, quando se fala em subjetividade, logo aparece a idéia de algo apenas específico do indivíduo, próprio e particular, aqui compreendido como singularidade, mas Guattari, ao definir subjetividade, confere-lhe um estatuto coletivo. Em “Revolução molecular” (1977/1987), ao tratar do movimento das minorias, da autogestão dos hospitais, das rádios livres, dos partidos políticos, da Psicanálise e suas metamorfoses, sugere a emergência de novas subjetividades. Preocupado com a ordem capitalista, observa o controle que o capital exerce não só aos níveis econômico e social, mas também ao da subjetividade dos indivíduos, sendo que especialmente a cultura exerce um papel de sujeição subjetiva. O que a subjetividade capitalística produz é justamente a homogeneização dos indivíduos, normatização e massificação de pensamentos, seguindo um sistema de valores. Essa ordem é “projetada na realidade do mundo e na realidade psíquica. Ela incide nos esquemas de conduta, de ação, de gestos, de pensamento, de sentido, de sentimento, de afeto, etc.” (Guattari & Rolnik, 1986: 42).

Avançando em seus estudos, uma definição de subjetividade proposta pelo autor é: conjunto de condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva. (Guattari, 92: 19).

É nessa perspectiva da subjetividade, que se desenvolve no socius e junto a intensidades pré-verbais (lógica do afeto), que se vai enfrentar a questão de viver em momentos de situações limite, como estar entre a vida e a morte em uma UTI. Nesses momentos, produções originais de subjetividade podem intervir nos processos de adoecimento e recuperação, levando em consideração a interação do paciente com o espaço e com a assistência à sua saúde, a partir da própria postura de vida (classe social, história de vida, outros acontecimentos).

Singularidade aqui aceita e subjetividade definida a partir de Guattari, a princípio parecem entrar em conflito, pois este se opõe a alguns conceitos da Psicanálise. Entretanto, da singularidade à subjetividade há um caminho a percorrer e uma proposta de coexistência. Aposta-se que a antítese entre singular, subjetivo e objetivo não existe.

Através dessas noções, percebe-se que, para abordar os modos saudáveis que permitem ao homem enfrentar o seu viver em uma UTI, é imprescindível ter atenção para com um sujeito biológico, vivente, dotado de inconsciente, que constitui um social e se constitui também em um social.

Ao se cuidar de pacientes na UTI, essas características do sujeito não podem ser esquecidas. São difíceis de serem integradas e implicam um alto grau de complexidade. No entanto, como Castiel (1994) aponta, propositadamente ou a propósito de, faz-se necessário falar de situações, mesmo que complexas, das práticas de saúde. Não é possível deixá-las de lado por parecerem inalcançáveis, ou mesmo fazer de conta que não existem.

Ao se observar em uma UTI as práticas de saúde, facilmente são perceptíveis níveis diferentes e interativos de atendimento. Corpos humanos sofrem e, nas palavras de Benoit (1989:78), “o sofrimento do corpo é relativo não apenas à própria doença, mas também à mobilização do mundo arcaico do sujeito que funciona na própria base de sua estrutura”. Com essa noção, pode-se averiguar os objetos da Medicina em interação com a singularidade e subjetividade de cada paciente.

Na prática médica, além de objetos concretos, como os medicamentos, há de se pensar no medicinal, que é tudo aquilo que serve para consolar os infortúnios da existência: atos, ações, remédios que fazem cessar males ou mesmo diminuir um sofrimento, levando-se sempre em conta as épocas e culturas. O medicinal evoca uma função, a de cuidar, e está presente tanto em quem trata como em quem é tratado. Vale prestar atenção para o fato de que nem sempre o medicinal do paciente funciona em harmonia com o medicinal do profissional de saúde. A partir da realidade desses vínculos, na UTI nossa atenção volta-se para o uso de aparelhos (objetos medicinais?) que podem manter a vida.

O desenvolvimento técnico das últimas décadas possibilitou suporte a órgãos humanos e funções vitais. Na UTI, precisamente, aliadas à luta pela “imortalidade”, estão as possibilidades de progresso do conjunto da ciência e da técnica, que não se dissociam das possibilidades de “mutação” do homem em todos os seus níveis de vida: biológico, físico, psíquico, social, político, etc. Esse fato provoca reflexões acerca do viver que torna possível a “manutenção” da vida. Será uma outra sociedade, uma outra liberdade, um outro modo de viver para suportar uma prática que adia a morte? (Morin, 1997)



O Adiamento da Morte?

Os homens nascem. Os homens morrem. Assim continua a acontecer, mesmo após todas as transformações da humanidade durante o decorrer da sua história. Essas afirmativas parecem óbvias, mas não são. Como questões, produzem minuciosas discussões filosóficas, antropológicas, psicológicas, míticas e práticas.

Os estudos sobre vida e morte vêm aumentando progressivamente nas últimas décadas, apresentando várias facetas. Falou-se e fala-se do porquê da morte neste século se dar no campo médico - morte medicalizada - (Ariès 1977/1990), (Ziegler, 1975), do afastamento dos médicos de seus pacientes terminais (Zaidhaft, 1990), da dignidade da morte (Kübler-Ross, 1987), do tabu da morte (Rodrigues, 1983), entre outros focos. Mesmo assim, apresenta-se o tema associado a um significativo silêncio.

“No fundo desse silêncio coletivo, os fantasmas individuais fazem suas danças macabras, roubando aos homens a consciência de seus limites, fazendo com que se acreditem imortais, por isso definitivamente presos ao tempo imobilizado” (Rodrigues, 1983, 202). Por que será que isto acontece? O que a morte provoca quando se pára por alguns minutos para se pensar nesse fenômeno e nos estudos realizados em torno dele?

Na escala filogenética, o homem é o único animal que se sabe mortal. A consciência da morte faz parte das conquistas constitutivas dos homens. “Já não é mais uma questão de instinto, e sim a aurora do pensamento humano, que se traduz por uma espécie de revolta contra a morte” (Morin, 1997:23). A consciência da morte e o horror que ela provoca são marcas da humanidade.

Engana-se, no entanto, quem pensa que a morte sempre foi compreendida da mesma maneira pelos homens. As diversidades marcam essa compreensão em tempos e lugares diferentes. A proposta de olhar essas situações mais de perto reserva um momento de reflexão por detrás dos panos. Inicialmente, três imagens podem ser apresentadas sobre as diversas maneiras de morrer. Imagens, aqui compreendidas, emergem das mais variadas formas, na medida em que são apreendidas nas diversas práticas sócioculturais. O momento exato da morte será o ponto de referência para possíveis interpretações.

A primeira imagem que se ressalta é a da boa morte pela boa vida. Ou seja, para se morrer de uma forma tranqüila, precisa-se viver bem-aventuradamente. Não basta o arrependimento na hora da morte. Quanto a esta, Ariès (1977/1990: 329) afirma que “não é, pois, no momento da morte nem na proximidade da morte que se torna preciso pensar nela. É durante toda a vida”. Essa imagem é remetida a uma época ou a uma prática social na qual a morte era esperada a qualquer momento, e meditar sobre ela fazia parte da orientação da vida. Pode-se considerar que, através dessa doutrina, a morte estimulava o estudo do ser a partir da fragilidade da vida. As pessoas não se desesperavam, mesmo frente ao perigo iminente. Para um homem preparado, todos os momentos se assemelhavam aos da partida.

Pode-se considerar que a morte era racionalizada. Quem fosse justo teria uma boa morte. Vida e morte ficavam bastante ligadas. A morte era celebrada em clima de festa. Era vivida como parte integrante da vida. Nessa imagem, ela atinge o grupo social do qual o morto faz parte. É um fato social e público.

Outra imagem da morte é aquela em que ela é negada durante toda a vida. Faz-se de conta que ela não existe. Tenta-se fugir dela. A partir dessa forma de se relacionar com o fim, a morte passa a ser impessoal. Não é mais uma pessoa, com um nome e marcas pessoais, que perde a vida. É, de preferência, no anonimato que a morte chega.

A sociedade, nesse caso, expulsa a morte. Nada mais anuncia ter acontecido alguma morte na cidade. Como resquício da morte anunciada com carros mortuários e avisos nas ruas, ainda resta, nos jornais e revistas, um espaço mínimo para divulgação de óbitos, que quase ninguém lê. Tudo se passa na cidade como se ninguém morresse mais. Apenas alguns homens de Estado, ou mesmo, públicos, têm sua morte anunciada que, a partir de algumas semanas, é esquecida. A morte surge como um desaparecimento.

Nessa situação criada diante da morte, o local ideal para se morrer passou a ser o hospital. Lá a morte pode escapar da publicidade e passa a ser solitária. Há toda uma disciplina a regular o mundo da assepsia e da higiene. O doente e possível morto, por ser inconveniente, passa a ser escondido do mundo e da sua família, que desejam e necessitam continuar uma vida normal. O silêncio passa a marcar essas mortes. Passa-se a querer ludibriá-la.

Parece que a essas imagens tem-se seguido outra, que de alguma forma tenta integrar as apresentadas acima. Na primeira semana de junho de 1996, uma notícia despertou curiosidade nos meios de comunicação. Morreu o psicólogo Timothy Leary, que na época estava obcecado por computadores. Ele sofria de câncer na próstata desde 1995. Planejava cometer suicídio e transmiti-lo ao vivo pela Internet, na qual mantinha uma página com o relatório semanal de seu estado de saúde. Seu projeto não se concretizou. Ele veio a falecer, cercado por amigos e parentes, em sua cama. O momento de sua morte foi gravado por câmaras de vídeo para ser mostrado na Internet. (Oliveira, 1996)

Impossível saber dessa notícia sem sentir um certo estranhamento. Leary não morreu no hospital, como geralmente tem sido um hábito desses últimos anos, principalmente se a pessoa já está doente. E mais do que isso, ele fez sua morte anunciada utilizando a Internet. Será que essa forma de morrer desperta outra imagem sobre a morte ao lado da tecnologia, como os computadores, Internet e por que não, aparelhos encontrados nas UTIs?

São marcas a serem investigadas, a constatar que, entre a vida e a morte, há uma produção imaginária incontável, que tenta dar conta da precariedade da existência.



O Lidar com a Morte

A espécie humana, ao lidar com a morte, apreende que ela não é apenas uma realidade biológica à qual está necessariamente sujeita, como se supõe para os outros animais sexuados que povoam a biosfera. Para essa espécie, a questão se apresenta diferente. Observa-se que alguns elementos comuns cercam o término da existência, isto é, a morte.

Mesmo em épocas diferentes e, às vezes, de maneira nada semelhante, a princípio, em torno da morte é celebrada uma cerimônia, que marca solidariedade do indivíduo com sua espécie e comunidade. Por mais que se queira negar, a vida de um ser humano e sua morte não são apenas um destino individual. Trata-se ainda de um elo que se estende ao gênero humano. O momento da morte também nunca se mostra como um fenômeno neutro. Causa um mal-estar e parece uma desgraça. Também depende de condições mal conhecidas do além, fazendo com que se busquem continuidades mesmo chegando ao fim. E, se entre o momento da morte e o fim da vida existe um intervalo, faz parte do acontecimento um estado intermediário. “Os ritos da morte comunicam, assimilam e expulsam o impacto que provoca o fantasma do aniquilamento”. (Rodrigues, 1983: 21).

O fim da vida e os ritos que são criados para se lidar com essa situação fazem parte da crise, drama e solução do mal-estar que a morte causa. Esses ritos propiciam que, do desespero e angústia, se obtenham consolo e esperança. Quando um ente querido morre, como um recém-nascido que durante meses foi aguardado por seus pais, familiares e amigos, a morte do bebezinho reproduz toda uma vivência cultural, simbólica, ideológica e mesmo sócioeconômica desse grupo.

Morin (1997), ao escrever sobre o indivíduo, a espécie e a morte, evidencia que a consciência humana da morte supõe uma ruptura na relação indivíduo-espécie. Conforme se foi subindo na escala animal, houve “uma promoção da individualidade em relação à espécie, uma decadência da espécie em relação à individualidade “(Morin, 1997: 56), mas quase sempre isto é recalcado. Há sempre a busca de uma razão para a morte: doença, velhice, azar, acidentes. O que não se aceita é que seja uma necessidade (da espécie?).

Observaram-se pontos em comum, da espécie humana, ao lidar com a morte, mas não podemos esquecer que a estreita relação entre vivos e mortos sofre mudanças no decorrer do tempo.

Nas sociedades industriais, a morte passa a ser um acontecimento agressivo, e “uma doença largamente considerada como sinônimo de morte é tida como algo que se deve esconder (...) para as pessoas que estão morrendo, é melhor que sejam poupadas dessa notícia, (...) a boa morte é a repentina...”. (Sontag, 1984: 12-13) Vale lembrar que, antes, a morte súbita era para os covardes. Morrer em paz era poder completar a sua obra e se despedir dos seus. Ao final do século XX, um século não só marcado por duas guerras mundiais, mas também por inovações e mudanças que ocorreram rapidamente, em alguns momentos e lugares os costumes e regras se perderam.

O mito da imortalidade do homem, e não mais de sua alma, ganha força. No capitalismo contemporâneo, a morte se faz presente nas coisas: produz-se “lixo”2 todo dia, pelo menos na chamada civilização cristã ocidental. A imortalidade dos homens e a mortalidade das coisas do mundo ficam diretamente proporcionais. Os dois fatos se relacionam ao modo como o homem se apropria da dimensão do real e da dimensão temporal na sociedade contemporânea - o efeito é um só: o esfumaçamento do finito (Brasil, 1995).

Cada vez mais realizam-se pesquisas voltadas para obtenção de aparelhos que possibilitem manter vivos os homens, e até mesmo para o congelamento dos corpos, tentando parar o tempo e apostando no prolongamento da vida. Também iniciam-se as experiências de clonagem amplamente divulgadas nos meios de comunicação. “É sem dúvida, por não ter podido resolver o problema do fim ( simplesmente porque o problema não tem solução) que o homem se voltou para o começo”. (Baudrillard, 1992: 135). Ao ser silenciada a morte, a vida passa a ser enaltecida como valor supremo. Uma morte foi inventada, fora do tempo real do acontecimento, projetada para o futuro, com aparelhos que conseguem prolongar a vida. Criou-se a ilusão de dar crédito à imortalidade perante a vida. Desrespeitou-se a morte como limite. Impôs-se um modo fantasmático de vivenciá-la (Oliveira, 1997). Também agora se quer dar assistência ao suicídio reforçando a abolição do limite do tempo e subordinando a morte ao tempo da vontade. Mais uma vez, a busca é da imortalidade.

A morte fantasmática vai apresentar duas faces: a do futuro sempre adiado e a do presente não efetivado. Ao se negar o tempo da morte, disseminado nas coisas da vida, a diferença entre a morte e a vida se desmancha no ar. Talvez o modo dominante e naturalizado da subjetivação da morte atualmente seja o da morte fantasmática. Tanto frente ao futuro sempre adiado, como no presente não efetivado, a vida vai sendo seqüestrada pela morte como fantasma (Brasil, 1995).



A UTI, para Onde se Vai?

Nos dias atuais, as UTIs existentes, de modo geral, são locais onde se internam doentes graves que ainda têm um prognóstico favorável para viver. Nesse local, são atendidos casos de pessoas que se encontram em uma situação limite (entre a vida e a morte) e necessitam de recursos técnicos e humanos especializados para sua recuperação. São espaços não muito grandes, com divisões internas semelhantes: sala onde ficam os pacientes, recepção, sala de reunião, quartos de descanso dos profissionais, banheiro e copa. Eles são reconhecidos e legitimados pelos médicos como um ambiente onde são utilizadas técnicas e procedimentos sofisticados para reverter distúrbios que colocam em risco vidas humanas.

Em qualquer UTI estão presentes os ventiladores mecânicos. Os primeiros desenvolvidos foram chamados de pulmões de aço, sendo construídos após a II Guerra Mundial. Também são encontrados nas UTIs os monitores cardíacos, desenvolvidos a partir de 1960. Com esse equipamento foram criadas, então, as unidades coronarianas, que, com esse avanço técnico, conseguiram reduzir em trinta por cento a mortalidade na fase aguda do infarto do miocárdio.

Nas UTIs, desde sua implantação, foi dada ênfase aos recursos técnicos existentes. Cada vez mais são realizados estudos para melhorar os equipamentos. No entanto, essa tecnologia, quando considerada isoladamente, pode ficar bastante limitada. Os recursos humanos, formados por profissionais intensivistas, precisam também ser aperfeiçoados.

No início, as UTIs eram reservadas a pacientes com infarto agudo; depois, com a criação de equipamentos mais sofisticados, passou-se a cuidar também de pacientes portadores de insuficiência respiratória, insuficiência renal aguda, hemorragia digestiva alta, em estado de coma, estado de choque, e diversas outras situações igualmente graves.

Os profissionais que ali trabalham são altamente especializados e recebem treinamentos especiais. Nas UTIs, podem ser encontrados profissionais com diferentes formações: médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas e psicólogos. Certo é que, em poucos locais se encontra uma equipe de trabalho formada com todos esses profissionais.

Ao se olhar para os doentes nesse local, é possível observar a aplicação do mesmo processo de despojamento que Goffman (1961/1974) descreve a respeito do processo de admissão no serviço militar, nos conventos e manicômios. Os múltiplos comportamentos exigidos dos doentes ao longo da hospitalização revelam esse despojamento. Assim, o processo de internação e funcionamento da UTI chama atenção por constar de alguns rituais.

No momento da ida para a UTI, começa a se evidenciar a rotina dessa unidade hospitalar. A primeira ação normalmente a ser realizada é a da “perda” das roupas, caso ainda não tenham sido retiradas em outra unidade. Esse processo de admissão remete a outras perdas, como a da saúde e a de “direitos”. Outros procedimentos, da competencia da equipe, também podem ser observados colher dados a respeito da doença, verificar o estado clínico de quem está sendo atendido, guardar os pertences pessoais. Além disso, encontram-se cuidados especiais, como a colocação de roupas da unidade, a escolha do leito apropriado e todo um aparato higiênico no que diz respeito a banhos e desinfecção. Aos familiares, são dadas instruções específicas. Isso tudo ocorre em um curto espaço de tempo e com muita eficiência. O ritual de preenchimento de formulários aumenta o clima de capitulação pessoal.

A UTI é um lugar isolado, separado por uma porta, onde se pode ler: “proibida a entrada de pessoas estranhas”. Lá, o tempo torna-se uma incerteza, e, às vezes, nesses locais, não existe nem mesmo relógio para orientar os pacientes. Geralmente está localizado no último andar do hospital geral ou de uma casa de saúde. Os ruídos dos aparelhos utilizados são intensos e irreconhecíveis pelo senso comum. As janelas são fechadas e a luz é artificial. A temperatura é constante, mantida por ar condicionado. No ar, odor de remédio ou desinfetante. Parece que se tenta controlar as condições de um ambiente ideal.

Internado nesse local, o doente torna-se um paciente, sem trocadilhos, uma pessoa resignada aos cuidados médicos, que deve esperar serenamente a melhora de sua doença. Esse paciente, desnudado por uma instituição total, perde sua identidade, transforma-se em número, em um caso clínico, deixa de ser responsável por si mesmo, sua doença e vida. O paciente é vulnerável, submisso e dependente.

Compete ao paciente, se estiver consciente, calar-se. A possibilidade de questionamento é anulada e resta-lhe, para ser aceito e “bem-visto”, o silêncio. Na instituição, parte-se do pressuposto de que o paciente não deseja saber do seu prognóstico, do futuro que o aguarda, acima de tudo se não for favorável à vida. Espera-se uma negação, que, nesse caso, corresponde à própria relutância da equipe de saúde em aceitar o que sabe.

O bom paciente na UTI permanece sedado, quase morto, mesmo que esteja buscando vida. Uma tensão se estabelece: a vida é desejada por todos, mas a equipe médica clama para que não seja inconveniente com reclamações e choros. A vida do paciente beira a morte e o silêncio. Barulhos, de preferência, apenas os da tecnologia, os dos aparelhos.

Para o paciente e seus familiares, esses procedimentos são assustadores, considerando a UTI um lugar frio, impessoal e mecanizado, voltado para a morte. Entre a casa e a UTI há, assim, divergências, como a falta de cumplicidade que é imposta, mas também ocorrem convergências, como a busca de ajuda que é dedicada ao paciente. Em algumas UTIs, para diminuir a tensão constante entre o espaço doméstico e o espaço da unidade, um manual é fornecido aos familiares visando a fornecer uma certa integração entre esses diferentes espaços. Ao que parece, a equipe acredita que as emoções interferem negativamente no tratamento. Algumas vezes até pode ser, mas não se tem tal preceito como absoluto. Talvez o que se tenta mesmo é fugir do confronto com a morte. Relacionar-se com uma pessoa que está muito doente é difícil. É mais fácil lidar de forma abstrata com a doença de um determinado leito. Nem informações sobre o estilo de vida do paciente e circunstâncias sóciopsicológicas são registradas nos prontuários.

Aos poucos, a equipe intensivista impõe ao novo doente e seus familiares um “modo de ser paciente”. Uma outra estratégia é utilizada: trata-se das informações dadas aos familiares sobre o estado clínico do paciente. Nem sempre essas informação são claras, pois os médicos utilizam termos técnicos em seus boletins. Mesmo assim, são satisfações oferecidas a respeito de um ente querido, que está sendo cuidado por uma equipe que vai apresentando sua competência. Uma relação de confiança precisa, então, ser estabelecida para que o papel do paciente internado e obediente seja aceito.

Esses comentários e observações, embora pareçam, não são contra a UTI e nem contra as novas tecnologias, mas persiste uma observação: mesmo sendo necessários esses procedimentos, eles não conseguem ficar isentos de conseqüências imprevisíveis, nem de produções subjetivas. Existem implicações em um mundo de significados, quando seres humanos se tornam pacientes. Os avanços da Medicina podem prolongar vidas e permitir que as pessoas retornem ao seu social. Também podem criar novas patologias, limitações permanentes, até seres estranhos. (Santa Roza, 1997).

Decat de Moura (1991) escreve que na UTI as tensões são constantes. A eficiência é uma marca, mas os profissionais, ao perceberem que os outros que estão a tratar são seres humanos como eles, parecem experimentar uma vivência de extrema angústia. Vivem ali algo que parece ser pior que a morte e que, freqüentemente, não se leva em consideração. É difícil defrontar-se com pacientes de fraldas, imobilizados, com aparelhos, chorando, despertos, conscientes ou não de seu estado clínico, além de outras situações constrangedoras. Ocorre uma total dependência que traz medo. Um medo que talvez seja próprio da precariedade da existência humana. Constata-se que, para os profissionais, essa experiência também é revestida de dificuldades. Cuidar de alguém e, efetivamente, aproximar-se dessa pessoa, faz com que da experiência da morte do próximo, surja a consciência do que seja morrer.

Hoje em dia, como já foi visto, é difícil ficar diante de um morto; ele necessita ser mantido oculto e banido. Mesmo o luto dos familiares precisa ser discreto. Por outro lado, paradoxalmente, incitam-se os discursos sobre a morte. Há mesmo uma ciência para tratar do assunto - a tanatologia - que apresenta um vocabulário depurado e autorizado.

Observa-se também que, por alguns momentos, os médicos na UTI se assemelham a um criador de vidas biológicas, e os limites entre o corpo e a mente, a vida e a morte, a doença e a saúde já não são tão precisos. A trama vai-se formando... Em relação às curas na UTI, alguns comentários podem ser feitos. Primeiro, parece que ir para um hospital, entre a vida e morte, para ser curado, é uma resposta a um fato identificado na cultura ocidental contemporânea como fracasso diante da doença que, em última instância, fica equiparada à morte. Antes, o hospital tinha uma outra conotação. Era uma instituição que recolhia as pessoas tanto para se curarem como para morrerem. Entretanto, a partir do momento em que a ciência e a tecnologia da medicina e das outras profissões a ela ligadas experimentam um dramático crescimento e desenvolvimento, a instituição hospitalar se transformou em uma instituição entregue aos processos de cura, tratamento e recuperação, que responde admiravelmente ao desafio da saúde, tornando possível a divisão do trabalho, transformando as emergências em rotina”. (Torres & Guedes, 1984: 103).

Vale observar que muitos dos que vivenciaram a experiência desse tipo de internação sobreviveram por haver algo mais além de aparelhos e tecnologia. Talvez desejo de continuarem vivos. Por outro lado, há também que se pensar na opção que alguns pacientes fazem pela morte. A princípio, pode-se considerar que essa escolha não existiria e, inevitavelmente, ninguém desejaria, de antemão, morrer. No entanto, alguns pacientes, em número cada vez menor, passam a olhar a morte com aceitação e, mesmo, serenidade. Não vêem mais sentido para viver, pois continuar vivo chega a ser desagradável e até mesmo doloroso. No entanto, há toda uma luta contra a morte, na UTI, ocasionando verdadeiros embates.

Muitas são as palavras usadas nas UTIs que lembram guerra e luta. Os tratamentos de emergência apresentam uma estrutura militar. O que pensar a respeito de “esquemas de anti-bióticos”, “bombardeios com raios”, “quimio-terapia”, “infiltração”, “bactérias que invadem”, entre outras expressões? Até a expressão “jogar a toalha” é própria do boxe: quando o lutador já não possui mais condições de continuar o combate, seu treinador “joga a toalha” para que o mesmo seja encerrado.

Nas UTIs, a doença é concebida como inimiga, e toda uma guerra começa a ser travada, na qual sobressai a oposição entre vida e doença. A doença, agora, é equiparada à morte, como já foi dito, e opõe-se à vida pela qual se luta. Vida não fica mais em oposição direta à morte, que é escamoteada, até porque a doença pode ser vencida, mas a morte não (Sontag, 1984).

Os médicos são os guerrilheiros, preparados para defender a vida. O espaço da luta é previamente determinado: o hospital, no caso específico, a UTI. Nessa guerra há regras e funções estipuladas, pré-determinadas, não só para os profissionais, mas também para os pacientes: cada um com tarefas específicas para vencer a doença - os profissionais, com sua eficiência; o paciente, através da aceitação do tratamento. Em torno de ambos, o silêncio. Essa guerra é sutil, sendo sempre prolongada, mesmo com a presença marcante do fim absoluto que é a morte.

Essas UTIs apresentam-se como lugares isolados nos quais não se vê o mundo lá fora, mas onde idéias que constituem o espaço cultural e pessoal de cada sujeito ali inserido podem ser observadas. O aparato técnico entra em contraste com a fragilidade da condição humana, e a situação econômica do paciente que é atendido pode ser determinante para o aumento ou diminuição dos cuidados que lhe serão oferecidos.

É interessante perceber que a UTI é mantida pela comunhão dos objetivos (salvar vidas), solidariedade, existência de um adversário comum (a doença) e formação de equipe para combater o mal. Até os uniformes dos médicos e profissionais de saúde são iguais: roupa branca. Nesse ambiente fechado, a atuação da equipe caracteriza-se pelo suposto trabalho em conjunto. Freqüentemente ouve-se nessa unidade.: “-todos são importantes”. A busca da melhora do paciente une os integrantes do setor. As desavenças ficam para depois, ou são “esquecidas”. A urgência e a necessidade de vencer a doença não propiciam tempo para se pensar em questões que não são nobres, a não ser salvar vidas.

Um ou outro médico pode vir a se destacar na equipe, que, geralmente, varia de dia para dia, dependendo dos plantões. Esses, às vezes, alcançam o brilho devido à sua eficiência, podendo mesmo adquirir um caráter mágico. A idéia de conjunto de pessoas, todas importantes, para salvar vidas, é fundamental, mas a glória individual de um médico não é eliminada e isso pode ser observado. Assustando a alguns, o objetivo maior desses profissionais, de vencer as doenças e prolongar vidas, provoca desequilíbrio.

Explica-se: a morte é inerente à espécie humana, mas os indivíduos recusam-na, e, hoje em dia, conseguem prolongar a vida por muito mais do que o esperado. Segue-se a essa constatação uma série de paradoxos: tão perto da morte nossa de cada dia (profissionais e pacientes), cada vez mais a ignoram; “lutando” pela espécie, os profissionais afirmam sua individualidade3. Na batalha do UTI, os indivíduos se esquecem de si mesmos e esquecem a própria morte, lembrando do aprendido que os torna eficientes; a utilização do silêncio como arma faz gritar as angústias, e as intervenções violentas e invasoras propiciam vida. Também os jalecos, geralmente brancos, protegem quem vem de fora da contaminação, e, vale perceber, protege quem está dentro da vida lá de fora, que é perigosa e apresenta outras contaminações. O campo é demarcado e procura-se evitar contágio.

No território da UTI de tantos desequilíbrios, incertezas e paradoxos, facilmente se passa da luta pela vida à morte resignada (e vice-versa); do desafio que se impõe ao risco de continuar vivo, ao medo de morrer (e vice-versa). Nada é permanente, sendo um espaço ambíguo, onde se procura controlar, através mesmo da negação e isolamento, o imprevisível. Na UTI se esconde e se denuncia: o paciente que morre, o seqüelado, o que ficou em coma; o profissional que não consegue fazer o diagnóstico não salva sempre, é impotente e onipotente.

Vale ainda evidenciar que, mesmo havendo pontos em comum entre as UTIs, como a presença dos respiradores e a ausência de relógio, cada um tem sua particularidade e termos específicos para a sua rotina. Esses fatos fazem com que se pense na singularidade de cada espaço construído: espaço social e individual.

No espaço da UTI, alguns controles são feitos em relação à temperatura ambiente (baixa e constante), à luminosidade (sempre a mesma, seja dia ou noite), aos ruídos das máquinas e à contaminação. Uma imagem que surge é a de um útero. Ali a pessoa pode viver de novo. Passa por um ambiente parecido com o útero materno onde, a princípio, o ambiente provê as necessidades. Mas o (re)nascimento exige que a “pessoa-bebê” respire por si mesma e que, nas vias do desejo, (re)viva.

Quando uma pessoa é internada em uma UTI, torna-se impotente, incapaz de efetuar uma ação para alívio de sua dor, sede, fome, impossibilitada de andar, mover-se na cama, falar e até mesmo respirar.

Uma primeira vivência de satisfação do bebê será encontrada no registro da necessidade; geralmente uma fome será saciada com o alimento oferecido. Em se tratando de seres humanos, no entanto,essa experiência, apesar de ocorrer em um registro orgânico, inscreve-se ao nível do aparelho psíquico. A partir de então, cada demanda do bebê vincular-se-á com o traço mnésico deixado por essa primeira experiência.

Essa explicação foi elaborada por Freud e faz com que se pense no conceito de realidade psíquica. Vale lembrar que o bebê também pode realizar seu desejo através de uma alucinação, assim como o paciente, através de sua capacidade de pensar, pode manter um controle diante da situação pela qual está passando. No entanto, tanto a alucinação do bebê, como o pensamento do paciente não são suficientes para satisfazer suas necessidades. O bebê dispõe de suas manifestações corporais para anunciar a tensão em que se encontra e precisa do outro competente para aliviar seu estado de privação. O paciente pode reclamar da comida, água, calor, falta de ar, entre outras coisas, solicitando aportes reais de que carece para acalmá-lo. Os dois, além da satisfação de suas necessidades, dependerão da “mão” que dá o que eles solicitam. Os procedimentos necessários à vida do paciente (dieta, oxigênio, medicação, exames, posição, cuidados higiênicos e assim segue), assim como os cuidados com o bebê, como já foi escrito, inscrevem-se ao nível do aparelho psíquico. Nos dois casos, não basta saciar a necessidade, porque existe uma demanda, que é demanda de amor.

O paciente, quando internado na UTI por vezes sofre perdas violentas, tanto fisicamente quanto ao nível de sua singularidade e subjetividade. Perde suas garantias, não sabe como será sua vida depois, tem medo de ser um fardo para a família, de perder o emprego... Fica bastante frágil, desamparado e se encontra em um período difícil. Muitas vezes, precisa (re)significar sua vida, precisa (re)aprender a respirar sozinho. De alguma forma, vivencia a experiência de renunciar aos seus investimentos. Ele ficará afastado da família, amigos, trabalho e lazer. A rotina de sua vida será alterada, passará por um estado de privação, isolamento, entregue aos outros, aos profissionais de saúde.

A forma como cada um vai lidar com essa renúncia e privação, provavelmente, estará relacionada à sua história de vida. Como alguns pacientes conseguem suportar tanta privação? Por que outros esbravejam e até fogem da UTI? Por que outros preferem a morte? Alguns, por fim, terminam perguntando sobre si, sua história, seu vazio, e, ao viverem de novo, podem descobrir que, ao respirarem sozinhos, são responsáveis tanto por sua história passada como pela que virá.



Morto-Vivo:
Crônica para uma Morte

Para terminar, vale apresentar um caso clínico. Escrever sobre o caso de um paciente, descrever os caminhos e mesmo as dificuldades vividas não é fácil. Será feito o uso da livre associação ao se apresentar um material registrado, visando a enfocar condições sobre a morte. As vivências são difíceis de serem explanadas e só adquiriram significado a posteriori, sendo enriquecidas enquanto reflexão, mas também reduzidas a um certo esquema que é próprio da teoria.

O paciente verdadeiramente terminal, ou seja, aquele em que o diagnóstico e prognóstico apontam um declínio progressivo para a morte, não tem indicação para UTI. São indicados aqueles que se encontram gravemente doentes, com risco atual de vida, cuja condição é potencialmente reversível. Nesse caso, tem-se os pacientes que estão entre a vida e a morte, e que o avanço da Medicina pode ajudar a mantê-los vivos.

Após um telefonema de um hospital, foi concedida a transferência dessa paciente para nossa UTI melhor equipada, oferecendo maior probabilidade de uma boa evolução clínica.

Essa moça de quinze anos chega apresentando um diagnóstico de insuficiência respiratória e pneumonia. Após a internação, foi constatado pela equipe o diagnóstico de miopatia congênita, que, até então, tinha sido omitido e traria dúvida sobre a indicação para ser aceita na UTI. Assim sendo, o caso era grave e o prognóstico desfavorável. Rapidamente, foi providenciado um esquema de antibióticos e colocaram-na em ventilação mecânica.

A paciente, totalmente dependente da equipe, demonstra ansiedade. Com olhos arregalados, olha para o lugar onde está e para as pessoas que dela se aproximam. Essa paciente, jovem e consciente, mobiliza a equipe. E a ela o estranho assusta.

Ao passar esse momento de mobilização, os profissionais percebem que há uma família do lado de fora, provavelmente angustiada. O que está acontecendo? Não sabem e o desconhecido é marcante. Essa família vem em busca de respostas. Nessa situação de real dependência em relação à equipe de saúde, que faz o diagnóstico e conduz o tratamento, a demanda inicial da paciente e sua família estará voltada para o médico. Por isso, faz-se necessário um contato com os familiares. A palavra dele reveste-se de grande poder e sua informação (objetiva) será subjetivada, decodificada e interpretada de acordo com as vivências singulares características da história de vida da paciente e do lugar que ocupa em seu seio familiar.

Nesse momento, o médico foi franco, apresentando a dificuldade do caso, mas sem se esquecer de que, quando se trata de pessoas, precisa-se “ler”, escutar e compreender a enfermidade a partir do paciente. O prognóstico também depende de como a paciente poderá reagir ao tratamento. Os pais escutam, ficam apreensivos, mas mostram satisfação por considerarem que ali sua filha poderá ser bem cuidada.

A UTI surge como um lugar de possibilidade de vida, embora o risco da morte seja constante. Por que será assim? Fica-se a pensar que o isolamento parece ser uma tentativa de controlar e dominar o imprevisível, a doença/saúde, a morte/vida. Nesse espaço cheio de ambigüidades, os conflitos precisam ser administrados sempre. A questão é lidar com os sentimentos provenientes de todas as pessoas que atuam na unidade. Parece ser necessária aptidão para uma convivência entre Morte /Vida/Fragilidade/Onipotência/Impotência. Na UTI, diante de tamanhas incertezas, tem que se ter cuidado para não haver uma grande desestruturação.

O psicólogo, quando atua em um espaço como a UTI, fica diante da concretude da experiência vivida e participa dos fatos que se transformarão em acontecimentos na vida do paciente e de seus familiares, assim como da construção dos elos da cadeia de signos da história pessoal de cada um.

A evolução do caso, para surpresa de todos, foi boa. Após vinte dias, foi o aniversário da paciente comemorado na UTI junto com seus familiares, a equipe e outros pacientes. A partir de um mês, começa a se tentar o “desmame”4, que é difícil. A utilização de uma cânula metálica, após traqueostomia, para ajudar a paciente a respirar é proposta, mas ela resiste. Seu pai também não aceita. Em desespero, chora e bate na parede. Sempre tinha negado a doença da filha e achava que estava perto de superar essa dificuldade. Pelo contrário, para ela sair do hospital vai ser necessária a presença visível de sua limitação, com a cânula metálica. Há um momento de desestruturação. Pára-se com o “desmame”.

O Natal e o Ano Novo já passaram. Recomeça-se o “desmame”. Agora a paciente reage bem, com o auxílio da cânula, e vai para a enfermaria de adolescentes. Depois tem alta. Vão para casa, mas por pouco tempo. Voltam para a UTI, a família e a paciente. Mais uma vez, recebe alta da UTI. Retorna para a enfermaria. Passa por um caminho já conhecido, sofre, cansa, aceita a morte como parte da vida. Até que, em uma quarta-feira, depois de tanto sofrimento, não tem mais vontade de comer. É hora de se lidar com o inevitável - a morte. A família, a psicóloga e também os médicos ficam com ela até o final. Depois de tanto sofrimento, o pai agradece e diz que vai ficar bem. Ainda tem um outro filho que precisa de seus cuidados.



Qual Não foi a Surpresa...

A princípio, nunca se imagina que uma pessoa possa chegar a completar quinze anos tendo uma miopatia congênita, mas tratava-se de uma pessoa resistente, que lutava determinada pela vida. Parecia que seus pais precisavam de seu sangue vivo para viverem. O sentido da vida deles talvez fosse a cura da filha. Ela, esse lugar ocupava. Lugar de uma paciente viva, com familiares a seu lado o tempo todo, reivindicando melhores tratamentos para vencer a doença.

Essa foi apenas uma das surpresas. Uma outra, talvez mais perturbadora, foi a rejeição ao uso da cânula metálica. Era de se esperar que, para quem queria viver, isto não seria problema, mas foi desestruturante. O mundo caiu. O pai e a filha desesperaram. A mãe mostrava-se preocupada com os dois, mas não demonstrou um sofrimento maior. A paciente se olhava no espelho. Era muito vaidosa. Nunca tinha imaginado que para viver precisaria de uma cânula metálica.

A raiva do pai foi quase incontrolável. Era muito difícil aceitar o limite. Parecia que só naquele momento veio a descobrir que sua filha apresentava problemas sérios para viver. Foram quinze anos para se dar conta de que sua filha tinha dificuldades congênitas. Veio a culpa. Por que foi gerada uma criança assim? Para não sofrer, ficou na fantasia de que sua filha era perfeita. A patologia fora, durante todo esse tempo, negada. Até no seu pedido de vaga para a UTI, ela foi omitida.

A equipe se surpreendia com a dedicação daquele pai. Chamou a atenção sua necessidade de estar ao lado da filha. Chegou a perder o emprego. Depois de externar sua raiva e revolta, a situação mudou. Foi procurar outro emprego. Continuava indo todos os dias à UTI, mas não passava o dia todo com a filha. Parecia que já não se sentia tão culpado pela situação.

A família e a paciente revivem suas deficiências. Agora, podendo olhar de uma outra maneira. Um fantasma caiu e depois até provocou riso, como o palhaço quando cai. Outras fantasias puderam aparecer. A família começou a poder lidar com a morte. “Nem o sol, nem a morte podem ser olhados de frente”. (Rodrigues, 1996).

Nesse tempo todo, a morte foi projetada para o futuro e essa criança foi-se mantendo viva. Pelos relatos posteriores dos pais parecia, em alguns momentos, que fora “ressuscitada”, e chegou mesmo a andar.

Por fim, uma outra surpresa: a aceitação do pai depois do último suspiro. Ele ficou ao lado da filha até o fim, e uma surpresa maior: os médicos também. Um chegou mesmo a chorar no final. O pai também chorou. A psicóloga arrumou os pertences da paciente. Olhou mais uma vez para a menina. Agora ela se foi, parecia em paz. Descemos com o corpo. O pai abraça a psicóloga. Diz que está bem. Vai cuidar de seu outro filho. Parece que, para que o pai pudesse suportar essa falta já anunciada, foi necessário ele se (des)identificar desse objeto subjetivo, a filha, para que ela pudesse morrer enquanto objeto objetivo, sem que ele morresse também. Assim, ele até pôde constituir um projeto para o futuro. O luto começou.

Nesse caso, entre a vida e a morte na UTI, alguns encontros foram possíveis. Entrou-se em confronto com a morte, enquanto vivência de castração, foi-se tocado, incomodado e transformado. Os vínculos afetivos possibilitaram a superação da tendência ao impessoal, ao sofrimento e à percepção da morte iminente, diante do medo de estar só.

Muitas coisas não puderam ser compreendidas - a ausência da mãe, a desistência de viver da paciente... Melhor não se compreender. Há sempre algo que escapa... Melhor assim, senão é possível se acreditar na imortalidade...