sábado, 6 de março de 2010

Vejamos, por exemplo, a reação de setores do Supremo Tribunal Federal a respeito do debate sobre a modificação da interpretação da Lei de Anistia. Note-se bem, estamos falando de simples modificação de interpretação, e não de revisão do texto da lei. Trata-se de fazer valer a letra do artigo 1º, parágrafo II da Lei nº 6.683, em que se lê: “Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal” –propõe-se lembrar que sequestros e atentados pessoais de toda ordem cometidos por membros do regime militar nunca foram objeto de anistia (sequer na lei que os próprios militares se auto-concederam). Isto, sem dizer que uma lei que fala em crimes de terrorismo não pode se furtar a condenar crimes de terrorismo de Estado.
No entanto, um dos arautos da ala conservadora do STF, presidente atual do referido tribunal, chegou ao limite de evocar o artigo 5, inciso 44, da Constituição nacional a fim de justificar que, caso militares fossem julgados por tortura, assassinato, sequestro, atentado pessoal e ocultação de cadáveres, então antigos membros da luta armada deveriam ter o mesmo destino.
Em um destes lapsos reveladores e patéticos em que o enunciador não percebe o que realmente diz, o referido ministro fundava sua argumentação no seguinte texto da lei constitucional: "Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático”1.
Como se vê, o texto constitucional é de uma clareza cristalina. Sua ideia é: o Estado democrático, este no qual os princípios democráticos fundamentais estariam assegurados e implementados, compreende como crime imprescritível a tentativa de grupos armados (ou das próprias Forças Armadas, como sempre foi o caso no Brasil) em destruí-lo.
Que um ministro do STF compreenda que isto implica também a condenação constitucional de ações armadas contra o Estado militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1984 só pode significar que, para ele, não há diferença estrutural entre Estado democrático e Estado ditatorial, ou que simplesmente não havia ditadura no Brasil naquele período.
Ou seja, a lei é muito clara na sua função de defender o Estado Democrático, esse mesmo Estado cujos rudimentos foram destruídos pelo golpe militar de 1964. O que a lei visa tornar crime inafiançável e imprescritível são raciocínios como este, tão bem exposto em manchete do "Jornal do Brasil", de 6 de abril de 1964: "Pontes de Miranda diz que Forças Armadas violaram a Constituição para poder salvá-la!"2. O que ela procurava bloquear é a afirmação de que, em situações “excepcionais” seria possível romper a lei para garantir o funcionamento da lei. No entanto, o referido ministro, em um salto mortal rumo à sofística, entendeu que a lei constitucional procurava criminalizar aqueles que lutaram contra uma ditadura militar.
Às vezes, perdemos a capacidade de enxergar o caráter absurdo de exceção que sela o destino do nosso país. Como se não bastasse o fato do Brasil ser o único país da América Latina onde a Lei de Anistia vale para acobertar crimes contra a humanidade, como o terrorismo de Estado, a tortura e a ocultação de cadáveres, o único país onde as Forças Armadas não fizeram um mea culpa sobre o regime militar, onde os corpos de desaparecidos ainda não foram identificados porque o Exército teima em não dar tais informações, descobrimos que, caso a anistia contra tais carrascos seja suspensa, ministros do STF estariam dispostos a condenar também militantes da luta armada contra o regime militar por assassinato e tortura.
Duas perguntas devem ser postas aqui a respeito do argumento de que “os dois lados têm crimes contra a humanidade”. A primeira é: qual foi o caso de tortura feito por “terroristas”? Como simplesmente não há (e, mesmo se houvesse, vale a pena lembrar que a Lei de Anistia não prescreveu os ditos crimes de sangue, tanto foi assim que guerrilheiros que assaltaram bancos e participaram de atentados continuaram na prisão após 1979), criou-se um argumento de circunstância que consiste em dizer que os sequestros também eram crimes contra a humanidade.
Como não adianta lembrar que crimes contra a humanidade são crimes perpetrados pelo Estado contra seus cidadãos, e não ações feitas contra um Estado ilegal e seu aparato de defesa, alguns generais de reserva chegaram a dizer que o sequestro de 78 horas do embaixador norte-americano Charles Elbrick equivalia a tortura e assassinato. O detalhe é que Elbrick, ao ser solto, não procurou um hospital por algum tipo de sequela, mas se resumiu a dizer: “Ser embaixador nem sempre é um mar de rosas”. Não há notícias de que algum torturado tenha reagido desta forma, et pour cause.
A segunda pergunta que devemos colocar aqui é: se o raciocínio de reciprocidade, que fundamenta esta posição, é realmente algo a ser levado a sério pelo saber jurídico, então, por exemplo, por que o Tribunal de Nuremberg não condenou os resistentes franceses contra o governo de Vichy?
Pois, diga-se de passagem, é bom lembrar que tais resistentes cometeram assassinatos, torturas bárbaras e sabotagens não apenas contra um Estado nacional constituído comandado por um antigo heroi de guerra, marechal Pétain, mas também contra cidadãos franceses. Qual era o princípio jurídico adotado neste caso? Ele não consistia em dizer que a violência sistemática do Estado contra o cidadão em hipótese alguma equivale à violência do cidadão contra um Estado ilegal e seus aliados? Ou ainda, que devemos compreender a importância de desenvolver um conceito como “Estado ilegal”?

Anatomia do Estado ilegal
A fim de procurar colocar tal questão em seu solo adequado, devemos lembrar que a tradição política liberal (note-se bem, a tradição liberal, e não apenas revolucionária de esquerda) admite, ao menos desde John Locke, o direito que todo cidadão tem de se contrapor ao tirano e às estruturas de seu poder, de lutar de todas as formas contra aquele que usurpa o governo e impõe um Estado de terror, de censura, de suspensão das garantias de integridade social3.
Isso demonstra como, mesmo a partir do ponto de vista dos princípios do liberalismo político, o argumento que visa retirar a legitimidade da violência contra o aparato repressivo da ditadura militar brasileira é inaceitável. Ou seja, esta é uma batalha que não separa esquerda e liberais, mas que se fundamenta no reconhecimento de uma espécie de campo comum entre as duas posições. Insistamos neste aspecto: mesmo do ponto de vista da tradição liberal, a situação brasileira é uma completa aberração intolerável.
Devemos levar esse ponto a sério e perder o medo de dizer em alto e bom som: toda ação contra um governo ilegal é uma ação legal. Um Estado ilegal não pode julgar ações contra si por ser ele próprio algo mais próximo de uma associação criminosa. E devemos dizer ainda mais: do ponto de vista estritamente jurídico-normativo, o regime militar brasileiro era mais ilegal que o Estado nazista alemão.
Como bem lembra Giorgio Agamben, do ponto de vista técnico, Hitler não pode ser chamado de ditador. Ele era chanceler do Reich legalmente designado após uma eleição na qual seu partido venceu, respaldado pela Constituição liberal da Republica de Weimar (o que demonstra quão pouco uma Constituição liberal pode garantir4). Contrariamente aos generais brasileiros, ele não depôs ninguém e não suspendeu a Constituição. O que ele fez foi utilizar o artigo 48 da Constituição de Weimar, que previa a decretação do Estado de emergência e governar sob Estado de sítio durante 12 anos. A comparação serve apenas (e gostaria de insistir no sentido limitador deste “apenas”) para ilustrar o caráter claro do Estado ilegal brasileiro que imperou no Brasil entre 1964 e 1984.
Devemos insistir nessa questão. Pois podemos dizer que dois princípios maiores fundam a experiência de modernização política que caracteriza a tradição da qual fazemos parte.
O primeiro destes princípios afirma que um governo só é legítimo quando se funda sobre a vontade soberana de um povo livre para fazer valer a multiplicidade de interpretações a respeito da própria noção de “liberdade”. Um governo marcado por eliminação de partidos, atemorização sistemática de setores organizados da sociedade civil, censura, eleições de fachada marcadas por casuísmos infinitos, além de assassinato e exílio de adversários como política de Estado certamente não cabe neste caso (diga-se de passagem, isso vale tanto para ditaduras de direita quanto para revoluções populares em estado de degenerescência, regimes totalitários burocráticos ou despotismo oriental travestido de esquerda).
Nesse sentido, podemos estabelecer, como princípio, que a legalidade de todo e qualquer Estado está ligada à sua capacidade em criar estruturas institucionais que realizem a experiência social da liberdade. Ele deve, ainda, levar em conta que a própria determinação do sentido do conceito de “liberdade” é o objeto por excelência do embate político.
“Liberdade” é o nome do que expõe a natureza conflitual da sociedade. Não estamos de acordo a respeito do que significa “liberdade”, já que, para ela, convergem aspirações advindas de tradições políticas distintas. Podemos afirmar que liberdade é indissociável do “igualitarismo radical” e do “combate à exploração socioeconomica”. Ou podemos insistir que a liberdade é indissociável do “direito à propriedade”. No entanto, bloquear a possibilidade política de combate em torno de processos e valores e, com isto, ignorar a natureza conflitual do vínculo social, é sempre a primeira ação de um Estado ilegal5.
Por isso, podemos dizer que o segundo princípio que constitui a tradição de modernização política da qual fazemos parte afirma que o direito fundamental de todo cidadão é o direito à rebelião. Quando o Estado se transforma em Estado ilegal, a resistência por todos os meios é um direito. Nesse sentido, eliminar o direito à violência contra uma situação ilegal gerida pelo Estado significa retirar o fundamento substantivo da democracia6.
Que a democracia deva, através deste problema, confrontar-se com “o problema do significado jurídico de uma esfera de ação em si extrajurídica”, ou ainda com a “existência de uma esfera da ação humana que escapa totalmente ao direito"7, que ela deva se confrontar com uma esfera extrajurídica, mas nem por isto ilegal, nem por isto equivalente à exceção própria ao poder soberano, eis um dos elementos maiores a exigir nossa criatividade política.
Não creio ser necessário aqui fazer a gênese da consciência da indissociabilidade entre defesa do Estado livre e direito à violência contra um Estado ilegal. No que diz respeito ao Ocidente, é bem provável que sua consciência nasça da reforma protestante com a noção de que os valores maiores presentes na vida social podem ser objeto de problematização e crítica.
Ela está presente, por sua vez, no artigo 27 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, documento fundador da modernidade política. Artigo que afirma “que todo indivíduo que usurpe a soberania seja assassinado imediatamente pelos homens livres"8. Ainda hoje, ela aparece no artigo 20, parágrafo IV da Constituição alemã como “direito à resistência” ("Recht zum Widerstand"). Encontramos um direito similar enunciado em várias Constituições de Estados norte-americanos (New Hampshire, Kentucky, Tennesse, Carolina do Norte, entre outros).
No entanto, não devemos compreender a ideia fundamental desse direito à resistência simplesmente como o núcleo de defesa contra a dissolução dos conjuntos liberais de valores (direito à propriedade, afirmação do individualismo etc.). Na verdade, em seu interior encontramos a ideia fundamental de que o bloqueio da soberania popular (e temos todo o direito de discutir o que devemos compreender por “soberania popular”) deve ser respondido pela demonstração soberana da força.
Este é o solo adequado para compreendermos o que está em jogo na negação brasileira do reconhecimento da incomensurabilidade entre a violência do Estado ditatorial e a violência contra o Estado. Este é o solo adequado para apreendermos o sentido da tentativa de desaparecimento do nome daqueles que participaram da luta armada contra a ditadura. Pois podemos dizer, neste sentido, que os jovens que entraram na luta armada aplicaram o direito mais elementar: o direito de levantar armas contra um Estado ilegal, fundado através da usurpação pura e simples do poder graças a um golpe de Estado e ao uso sistemático da violência estatal. Desconhecer este direito é, este sim, o ato totalitário por excelência.

Um comentário:

Blog do tio Pepe disse...

Dom Pepone, extraido da Folha de SP de 1998.