sexta-feira, 26 de março de 2010

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Os novos saberes que trouxeram novos poderes desencadearam uma onda de transformações na ordem social e natural da vida humana que se tornou, para muitos pensadores, um processo de desintegração planetária. As forças acumuladas e concentradas, mais do que constrangedoras e ameaçadoras, acabaram por alcançar o índice de destruição global. Não são poucos os que vêem no poderio das ciências e da técnica uma verdadeira catástrofe para o planeta inteiro, caso as questões da ética não voltem a ser uma preocupação dos homens das ciências.

Diante desta realidade Jean Bernard, em sua obra Da Biologia à Ética, desenvolve a questão daquilo que ele denomina no subtítulo “Os novos poderes da ciência. Os novos deveres do homem”. 10 Parece claro que o tema da ética, pelo menos enquanto se presta atenção à literatura recente, desemboca na Bioética. Fato evidenciado pelo tratamento que Bernard dá às questões éticas; no fundo, todas giram em torno da vida, que é a razão de ser da bioética. Não se trata da vida humana apenas, mas da vida em todas as suas manifestações.


III. O caminho da bioética

A bioética é, de alguma forma, a retomada em seu sentido original da definição de homem como Czoon Echon Logon, o que quer dizer que o homem é em primeiro lugar um ser vivo falante. O que faz com que ele se sinta um ser-no-mundo não como uma razão abstrata da qual não se pode fazer uma imagem. Esta retomada do homem como ser-no-mundo e como ser vivo conduz inevitavelmente para a sua dimensão corporal. A presença do homem no mundo se dá enquanto é corpo, mas um corpo vivo, responsável pela totalidade de suas manifestações. O homem deixou de ser tratado como um eu abstrato ou uma consciência transcendente possuidores de um corpo, para ser corpo. Portanto este não é mais visto como uma parte secundária da natureza humana, mas sua própria identidade, sua condição de ser, seu self.

Pelos limites deste texto não posso me estender sobre essa revolução copernicana na antropologia ocidental, mas fica claro que, graças a ela, foi possível traçar a questão da ética, não mais em termos da racionalidade universal, mas nos limites de um ser vivo, cuja existência é uma fenomenologia no tempo e no espaço.

Ninguém desconhece a exaltação do corpo que os meios de comunicação de massa fazem da imagem corporal, o que, de alguma maneira, contribuiu para que o debate bioético alcançasse um número maior de pessoas, fora do círculo dos cientistas e eticistas. Começa assim o resgate da dignidade do corpo como ponto fundamental da dignidade da pessoa humana.

Parece inquestionável que o debate bioético começou se articular em torno do controle sobre as diferentes intervenções no corpo humano, especialmente, sobre a ação da medicina. Segundo afirma Andorno “O ponto comum a todas as novas questões, é o valor do homem em sua corporeidade face aos desenvolvimentos biomedicais”. 11

A bioética teria surgiu como um debate sobre as atividades médicas. A questão era saber até onde pode chegar a intervenção da medicina em relação aos pacientes.

Os grandes avanços da biologia molecular, em especial a genética, multiplicaram os poderes dos médicos sobre seus doentes. A medicina hoje dispõe de alta tecnologia que deixou as transfusões de sangue algo simplório diante das possibilidades de transplantes de órgãos, células e genes, das técnicas cirúrgicas estéticas, da fecundação artificial e, por fim, da clonagem humana. Entretanto, segundo Engelhardt, a bioética teria o “objetivo de abordar vastas questões de relacionamento entre a moralidade e a ecologia”. 12

Diante de tamanhos poderes tecnocientíficos era preciso saber definir os deveres dos que podiam manipular tais tecnologias e, ao mesmo tempo, garantir os direitos daqueles que sofreriam as respectivas intervenções. Para isso foi preciso buscar fundamentos que justificassem o controle da aplicação dos novos conhecimentos sobre o ser vivo, humano ou não. Sem eles todos os esforços poderão ser inúteis. Em poucas palavras esta seria a tarefa dos bioeticistas. Uma tarefa que, até hoje, não se desenha muito fácil. As divergências são profundas a tal ponto que, sob certos aspectos, assumem contornos contraditórios.

Querer expor o tamanho das dificuldades para construir uma bioética que tenha características universais, é uma empreitada quase impossível, por isso para simplificar a minha exposição vou agrupar os estudiosos dos temas bioéticos em duas correntes, tentando apresentar os pontos de convergência e os pontos de divergência.

Um ponto de unanimidade é referente à pessoa humana, mas as divergências ocorrem na maneira como entender a pessoa humana. Acredito ser possível expor a questão a partir de duas posições. Uma encontra nas teses de Engelhardt seu referencial maior, a outra preserva alguns conceitos tirados do humanismo filosófico e da doutrina cristã.

Engelhardt sustenta suas posições numa ética totalmente profana, que ele denomina de secular. Tudo estaria centrado no homem. Em sua argumentação invoca a célebre frase de Protágoras: o homem é medida de todas as coisas. 13 Esta afirmação foi sempre interpretada sob o signo do relativismo, entretanto, segundo Engelhardt, “sem uma noção canônica da natureza humana ou uma visão essencial do significado das pessoas a maior parte dos elementos de um relativismo não pode ser evitada”. 14

Para explicitar melhor a questão vou continuar me valendo de suas próprias palavras. “São as pessoas que dão medida a todas coisas, porque ninguém mais existe para tomar as medidas, a não ser elas. Precisamos ser responsáveis por nós mesmos, e em nossos próprios termos, porque não aceitaremos qualquer outro reclamo independente, canônico e essencial de Deus sobre nós, e não podemos encontrar um reclamo na razão”. 15

Diante das possibilidades concretas de aumentar os instrumentos de intervenção do homem na vida em geral, Engelhardt é muito claro ao confiar na responsabilidade humana a tomada de decisões. “No futuro, diz ele, aumentará nossa capacidade de limitar e manipular a natureza humana para ir em busca dos objetivos estabelecidos pelas pessoas. Ao desenvolver nossa capacidade de nos envolvermos em engenharia genética, não apenas das células somáticas, mas da própria linha germinal humana, seremos capazes de dar forma e modelar a natureza humana à imagem e semelhança dos objetivos estabelecidos pelas pessoas humanas, e não pela natureza de Deus”. A esse respeito Engelhardt conclui afirmando que as mudanças da natureza humana podem ser tão radicais que nossos descendentes poderão ser classificados como uma nova espécie de seres vivos. Em sua argumentação diz: “Se nada há de sagrado a respeito da natureza humana (e nenhum argumento meramente secular pode revelar o que é sagrado), nenhum raciocínio será capaz de reconhecer por que, com os devidos cuidados, a natureza humana não pode sofrer mudanças radicais”. 16

A argumentação de Engelhardt em favor de sua tese é reconhecidamente muito consistente e de difícil refutação no interior de uma ética secular. Somente apelando para outros cânones, fundados na Natureza, na Razão ou em Deus, seria possível contra-argumentar. De alguma maneira é o que tentam fazer os defensores da preservação da natureza humana. Vários são os autores que defendem a preservação da essência da espécie humana. 17 A posição de todos eles gira em torno do conceito de pessoa. A pessoa deveria ser preservada a qualquer custo. Mas o primeiro obstáculo está em estabelecer o sentido de pessoa. Parece que o conceito de pessoa é de ordem jurídica ou filosófica. Em termos biológicos não se pode chegar a um conceito abstrato. A pessoa é definida como um ser autônomo, isto é, dotado de liberdade, e um ser consciente. Teoricamente está claro, mas quando o indivíduo não está em condições de exercer sua autonomia, ou quando, por qualquer motivo, não goza do estado de consciência, como?

O argumento a que se apela nestas circunstâncias é o de que a pessoa não começa pelo nascimento, nem somente existe quando tem todas as suas faculdades atuantes, pois ela é sempre pessoa, na plenitude ou em potencial. Assim, como diz Bernard, a vida começa na concepção. “O ovo humano acabado de formar, resultante da fecundação do óvulo pelo espermatozóide, contém em potência o ser completo que será mais tarde”... 18

Outro ponto de divergência aparece ao se falar em propriedade. Para Engelhardt o corpo de uma pessoa, seus talentos e suas habilidades também são primordialmente dela. E o exercício de propriedade concede ao proprietário o direito de fazer o que bem entende com o que é seu. Entretanto no lado oposto, o conceito de propriedade deve ser entendido como o direito de cada pessoa preservar o que ela é. Diz Andorno “A pessoa não tem a ‘propriedade’ de seu corpo, pois a pessoa não possui um corpo, ela é seu corpo”. 19 A pessoa se identifica com seu corpo, seja em si mesma, seja em relação ao outro, por isso a vida social deve acontecer dentro do respeito mútuo e não sob o regime de troca conforme as leis do mercado.

A bioética, em termo gerais, persegue a qualidade de vida e a dignidade da pessoa humana, entretanto, isto não quer dizer que seja esta forma de vida que a atualmente desfrutamos. Pode ser que criar um novo ser vivo seja a maneira mais adequada de preservação da vida, incluída a humana. A natureza foi altamente pródiga na criação de ilimitadas formas de vida.

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