quinta-feira, 13 de junho de 2013


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Os médicos estão infelizesMIGUEL SROUGI

Os médicos estão infelizes com os salários desonrosos. Mas imaginar que essa é a causa principal do desalento é uma simplificação injusta
HOJE, NO dia dos médicos, resolvi homenageá-los. Resgatei na memória pesquisa de 2005 do Ibope sobre as instituições mais confiáveis na nossa sociedade. Como antes, me enchi de encantos: ganharam os médicos, com 81% das indicações, à frente dos padres (71%) e dos militares (69%). Resgatei também na memória aquele momento quase indescritível, os olhos marejados e agradecidos de alguém reconquistado para a vida. Emoções incomparáveis, que só um médico pode usufruir.
Nesse ponto, uma pergunta inevitável. Apesar do Ibope e dos momentos ricos, estariam os médicos brasileiros felizes com seu entorno e seu destino? Comecei a ficar aflito ao relembrar o noticiário recente: greve dos médicos paralisa o atendimento; cirurgiões se negam a realizar intervenções pelo SUS; pacientes morrem na porta de hospitais; médicos suspendem cirurgias cardíacas e abandonam centenas na fila de espera.
A aflição começou a aumentar quando me perguntei: estariam os médicos ficando insensíveis e deixando de se postar ao lado de seus parceiros, lutando contra o sofrimento?
O próprio noticiário ofereceu-me pistas para compreender a situação: em Fortaleza e em Alagoas, o salário mensal dos médicos do setor público oscila entre R$ 726 e R$ 1.500, para meio dia de trabalho; os cirurgiões da Paraíba recebem, em média, R$ 76 por intervenção que realizam no sistema público de saúde; hospitais e leitos de terapia intensiva foram inaugurados por políticos e, depois, abandonados por falta de provisão para contratação de pessoal, aquisição de equipamentos e custeio; hospitais universitários federais estão desamparados, devem R$ 450 milhões e estão totalmente desaparelhados, em alguns deles o déficit de pessoal chega a 700 funcionários; equipamentos avariados obrigam pacientes mineiros a viajar quatro horas para complementar tratamento de radioterapia.
A aflição ficou quase insuportável quando compreendi que os médicos estão, sim, infelizes com os salários desonrosos. Contudo, imaginar que essa é a causa principal do desalento representa simplificação injusta e mal-intencionada.
Os médicos têm vocação para exercer com altruísmo sua missão, defendendo a condição humana e a sociedade. Na prática, são afrontados por um sistema de saúde imerso na incompetência, na indecência e na indigência, frustrando-se quando exercem a ação médica. É irrealista esperar que eles pratiquem condignamente sua profissão quando os instrumentos para uma vida digna lhes são subtraídos por gestores indecentes.
Os nossos governantes, com felizes exceções, transformaram a saúde em balcão de negócios obscuros e de trocas de favores, destruindo a promissora estrutura médico-hospitalar edificada no Brasil entre os anos 40 e 60. Os salários do pessoal da saúde foram aviltados e, hoje, só os idealistas ou os desamparados se sujeitam a trabalhar em serviços públicos. Como exigir que um médico, recebendo R$ 726 ou mesmo R$ 1.500, deixe de ter três ou quatro empregos, trabalhando até a exaustão, ou se mantenha atualizado, quando um livro técnico custa entre US$ 50 e US$ 300 e quando cursos de aperfeiçoamento têm de ser pagos pelo próprio profissional?
Essa situação se torna mais desconfortável se lembrarmos que cerca de 95% dos médicos brasileiros são assalariados, prestando serviços a entidades privadas de assistência, que contribuem para o desânimo ao cercear a autonomia e criar restrições exageradas e perigosas às ações médicas.
A sociedade também alimenta esse processo perverso, assumindo atitudes de intransigência desconcertante ante seus médicos. Em todos os momentos, exige deles nada menos que a perfeição, não aceitando sequer a derrota em fatos inexoráveis, como a falibilidade humana, a existência de doenças incuráveis, a decadência pelo passar dos anos, a morte implacável.
Sociedade que, quase sempre, desconsidera o ambiente circundado pela indigência e pela violência no qual atua um sem-número de médicos brasileiros. Ignora-se a situação cruel enfrentada por esses profissionais, que exaurem seu talento e seus ideais ao clinicar em hospitais públicos caóticos, onde escasseiam ou inexistem materiais e medicamentos mais simples, onde se desgastam tratando de doenças já erradicadas em países mais sérios e onde um paciente com câncer espera até seis meses para ser internado, se sobreviver para isso.
Enfim, os médicos da nação estão realmente infelizes, e muitos brasileiros julgam que, tanto na saída como na chegada, o sentimento tem a ver com salários ou benefícios materiais. Contudo, é importante que se compreenda que os drs. Severino Baiano, José Pernambucano, João Paulista ou Antonio Mineiro, que dedicam suas vidas e emoções para aliviar o sofrimento alheio, estão infelizes, quase nunca por causa de interesses pessoais menores, mas porque a maioria é vítima da combinação perversa de uma sociedade complacente e governos indecentes. Realidade que Riobaldo, o jagunço filósofo de Guimarães Rosa, sabia muito bem como descortinar: "Digo, o real não está na saída ou na chegada, ele se dispõe para a gente no meio da travessia".

MIGUEL SROUGI, 61, médico, pós-graduado em urologia pela Universidade Harvard (EUA), é professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Rodrigo Maia: Anotem o nome e o endereço da crise
Índice

Nenhum comentário: